Vem o som da locução de rádio de que “nor even god can sink this ship!” quando foi anunciado o lançamento do maior transatlântico que os mares já viram. Como a pretensão comprometeu a água benta, o Atlântico Norte colocou um morro de gelo na frente daquela água parada e pronto, só Kate Winslet sobreviveu pra contar a história. O erro? James Cameron não ser Werner Herzog.
Os dois são obsessivos, convenhamos, porque ir ao fundo do mar buscar os destroços do navio e fazer filmagens proibidas não deixa de ter seu grau de insanidade. Nada se compara, no entanto, ao que Herzog fez com Klaus Kinski e o navio Molly em Fitzcarraldo. Assim como o Titanic, Molly também não se conteve em ficar sobre as águas, mas fez o contrário do gigante: subiu montanhas. Era a própria embarcação divina se movendo sobre elas, quando não as movia. Na verdade, um morro, mas um morro de verdade e um barco a vapor de verdade, com gente de verdade puxando e ninguém do CGI envolvido.
Herzog é desses diretores que transforma sua obsessão numa ânsia de todos, porque levou o elenco pro meio da selva (não se contentou em ficar perto da “civilização”) e forçou todos ao máximo, sobretudo seu melhor inimigo, Kinski. O protagonista carrega o ímpeto do autor quando almeja construir um teatro de ópera em plena floresta amazônica e quer que Caruso o inaugure. Como destaca Herzog, é Caruso o personagem principal, pois conduz as vontades de Fitzcarraldo até o último instante.
Sem o dinheiro dos empresários da borracha, representados principalmente por José Lewgoy, o protagonista parte em busca de sua própria extração e apoia-se na geografia: o barco não pode subir por um rio por conta das corredeiras, mas pode subir por outro e cruzar a mata onde os rios se aproximam. Lógica brilhante, e basta que se destrua toda a mata no caminho e se explore os índios que o tomam (ao barco) por um deus para que tudo dê certo. E assim o homem branco, cada vez mais encardido, atropela a natureza em prol da cultura.
A tensão no set era tanta que Herzog e Kinski passaram das agressões verbais às físicas e houve mesmo a história de que os indígenas que trabalhavam na produção propuseram a Herzog a morte do ator, rejeitada. Kinski não foi a primeira opção do diretor, pois o ator seria um problema se isolado na selva. Jack Nicholson queria atuar (a produção não podia pagar seu cachê) e Jason Robards abandonou doente a produção após seis semanas. A consequência: um insano Kinski isolado na mata.
Como insano é o personagem que representa e que atrai o olhar do espectador até mesmo diante da monstruosidade de se transportar a embarcação morro acima. Ele brilha na tela, parece estar sozinho, exceto nos momentos em que contracena com a Molly que inspirou o nome do navio: Claudia Cardinale, única capaz de embarcar nos delírios de Fitzcarraldo, de remar com ele por dois dias pra ver Caruso, de ceder-lhe as economias, de amá-lo numa rede sob o olhar de um filhote de onça.
Herzog associa duas paixões nessa pintura em movimento. A experiência documental transforma em palatável a insensatez de Fitzcarraldo e mostra as possibilidades de tudo ali, pois outras grandes empreitadas falharam, como a ferrovia guardada por Grande Othelo. O modo como apresenta as paisagens amazônicas, com fotografia do premiado Thomas Mauch, mostra de alto a baixo que o lugar é maravilhoso e ao mesmo tempo sombrio, pois não se sabe o que espreita pelas árvores ou depois de cada curva do rio. As tomadas do navio em funcionamento, inclusive das engrenagens (sem os efeitos de som e computador de Cameron), da tripulação em seu cotidiano, dos índios à espreita (as mãos que desaparecem na sombra), mostram a vida em funcionamento no meio da selva.
Outro prazer de Herzog é a ópera, o tempo todo presente como amuleto do protagonista. Toda vez que liga o gramofone, o olhar de Kinski é hipnotizador, seja no meio de uma festa (a mais magnífica das cenas) ou entre as árvores da floresta no alto do barco (a mais absurda). A voz de Caruso dialoga com empresários, com crianças, com tambores e com um porco. Do conflito entre civilização e barbárie, resta a arte. À sua maneira, tanto Fitzcarraldo como Herzog fizeram ópera no meio da floresta, sem naufragar.