REMISSÃO DE PENA E FLORES DE RUÍNA | LITERATURA

Flores da RuínaNa 107ª edição do Prêmio Nobel de Literatura, pela 14ª vez ele foi para a França, desta vez para o prosador Patrick Modiano, autor da trilogia composta por Remissão de pena, Flores da ruína e Primavera de cão, os dois primeiros publicados pela Record no Brasil e o terceiro ainda inédito. Em inglês, o primeiro volume e a trilogia levam o nome Suspended sentences, referência acertada ao que Modiano deixa ao leitor.

Escritor das entrelinhas, o laureado mostra elementos de sua vida de modo poético, atrelando-se às sensações infantis mais do que à objetividade da narrativa, deixando espaços, pausas, silêncios que preenchem o leitor e o afastam do livro, mas não da leitura. A cada capítulo parece haver um novo espaço nessa suspensão de tempo, em que a ordem de escrita parece, muitas vezes, sobretudo em Remissão, aleatória, permitindo voltas e novas descobertas nas brechas deixadas.

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Remissão de pena retoma a infância na companhia do irmão, dois pequenos numa pequena cidade próxima a Paris e distantes do pai, comerciante, e da mãe, atriz, ambos viajantes. Criados numa casa de mulheres, os meninos vivem num ambiente de ingenuidade no pós-guerra em que cada um leva a vida como pode. Cabarés e festas em casa ditam o comportamento doméstico, com homens recorrentes que se tornam parte da vida dos pequenos, levando-os para passear em seus carros ou para brincar no parque.

As relações, singelas, levam a surpesas, como a da descoberta que a pequena Hélène, outrora artista de circo, mancava e talvez por isso não pudesse mais ir ao picadeiro. Branca de Neve é quem toma conta das crianças e as leva para brincar no bosque; no final da rua, um castelo que sempre faz parte dos planos de amanhã. As conversas, sempre entrecortadas, são tudo o que os jovens têm para entender o mundo dos adultos, do qual sempre esperam alguma coisa, ou alguém.

Naquele tempo, Patocha aprende a escrever suas memórias, um diário de acontecimentos do qual parece tirar as histórias que conta. Narradas no passado, levam o leitor para aquele tempo e o deixam lá, mesmo depois do livro que fica como os personagens da infância para o Patrick adulto: “No fundo, eles jamais me deixaram.”

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Flores da ruína parece, de início, menos pessoal: um crime misterioso de anos atrás é investigado por meio de jornais, catálogos e lugares. A vida do protagonista, no entanto, tem interseções com os espaços suspeitos e os lugares por onde o casal potencialmente passou, parte da formação de um escritor antes de o ser. Os amigos vão e vêm, personagens surgem misteriosos, mudam diante dos olhos do leitor e somem em mistério diferente.

Como Rubem Fonseca em A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro, o romance traça (ou pede ao leitor que tenha) um mapa de Paris, de lugares cujas ruas, os bairros, os pontos de referência soam conhecidos, mas trazem histórias por trás dos panos empoeirados levantados pelo narrador. Como o filho fez com o conto de Fonseca, uma leitura fotográfica, ao estilo que Benjamin destaca ao comentar a fotografia detetivesca, instigaria o olhar, outra leitura da narrativa.

Mérito da tradução de Maria de Fátima Oliva do Coutto está nas sutilezas temporais apresentadas pelo narrador. Os diferentes passados mostram o que se mantém no presente e o que ficou deixado, o que é recuperado e o que é surpresa. Jogado pelas lembranças que Modiano tenta organizar, cabe ao leitor nortear-se pelas pistas apresentadas sem se preocupar em ligar as peças, pois mais vale a investigação que a descoberta das reais motivações do crime.

Ainda sem Primavera de cão, o leitor brasileiro pode, sem perda, ler e reler os outros dois textos de Patrick Modiano despreocupado da ordem cronológica; fará descobertas nos dois sentidos. Alguns pontos até mesmo se tocam, como o carrinho de batidas e o irmão, mencionados no segundo, intensos no primeiro. Em sentido inverso, ficam ao leitor as descobertas e a espera por Primavera.

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