George Orwell é considerado melhor ensaísta que romancista, mas seus trabalhos mais famosos são, numa sociedade desenvolvida pelo storytelling, A revolução dos bichos e 1984, este finalizado em 1948, pouco antes da morte de Orwell, em 1950. Na época, o livro, distopia inspirada em Nós e Admirável mundo novo e inspiradora de Fahrenheit 451 e Laranja mecânica não foi considerado um grande trabalho literário ou mesmo oracular, e a adaptação de Michael Anderson mostra um pouco disso.
Mais preocupado com o romance no pano de fundo político do que o contrário, o filme deixa claro, desde o início, que se trata de um futuro não muito distante, o que acaba por afastar o espectador do envolvimento, já que boa parte da tecnologia na época ainda não era de acesso popular. Esse afastamento não impede o envolvimento com a história, em que o protagonista, Winston Smith, se vê incomodado pela presença de Júlia, ambos funcionários do Partido.
Esse incômodo, enquanto tal, é claro componente político da narrativa, mas quando as falas tornam explícita a admiração mútua, a trama descamba para uma love story sem muito love e que ameniza o forte da obra de Orwell, a crítica política a regimes totalitários. A perda da individualidade é nítida o tempo todo, mas isso vai além do direito de amar, como panfleta o filme.
O 1984 de Anderson é a primeira aparição do Grande Irmão na grande tela, que ganhou um irmão caçula em 1984, dirigido por Michael Radford. A primeira adaptação é ainda em preto e branco e está mais longe do mundo cercado por câmeras, televisão e internet em cada dispositivo móvel, o que torna sua leitura situada em contexto mais próximo ao da escrita de Orwell. Talvez por isso, Anderson não vá além do que o livro oferece, e mesmo faz opções que limitam e explicitam determinados momentos da história.
Isso não impede boas cenas, como a do encontro de Smith com seu maior medo, em que a porta da gaiola abre-se lentamente aos sons que dizem o que está por vir, numa lembrança a M, o vampiro de Düsseldorf, quando sons e sugestões dizem mais que as próprias ações, mais intensas na mente do receptor, o que o rádio faz muito bem. Ou quando o casal é descoberto e mostrado no reflexo quando encara seu delator diante do espelho que escondia os olhos do Partido. Mesmo com essas cenas bem construídas, outras se perdem, como o gran finale do livro, preparado arduamente durante o filme com a insistência de 2 + 2 = 4 e os quatro dedos da mão, para culminar em um Winston gritando louvações ao Grande Irmão.
Ainda assim, tudo o que Winston e Júlia fazem para ficar juntos, mesmo nessa versão sem clima de romance, tem uma motivação por trás, uma proposta para algo diferente. As marchas que tomam as ruas de hoje, parecem acreditar que “Guerra é Paz” (quem ganha com o mar de ofensas que se distribui?), “Liberdade é escravidão” (apegos aos discursos de ontem impedem a reflexão sobre o hoje) e “Ignorância é força” (e os professores de História se perguntam sua função). Quando Júlia diz que quer ter um filho, é um pensamento no futuro, em algo além do que acontece no presente, no aqui e agora. É como dizer que não é apenas por vinte centavos. Mas pelo que é, então? Quem sabe?
Como nos anos 1950 ainda não conseguiam entender a que ponto chegaria a distopia de George Orwell, estudiosos de todas as áreas acompanham os movimentos sociais no Brasil de hoje e procuram explicações para julho de 2013, para as ruas do último março e para as redes sociais de todo esse tempo, sobretudo consequências das eleições. O jogo de interesses eleitoreiros (PT ou PSDB?), mercadológicos (com a Petrobrás suja, quem se limpa?) e políticos (gay casa? mulher aborta? trabalhador tem direito?) tem plena consciência, ao contrário dos peões que carregam faixas nas ruas pedindo o retorno da ditadura, de que o calcanhar de Aquiles da realidade é o mesmo de todas as distopias: a educação ruim.