Que o cinema morreu todo mundo sabe. Ele já morreu tantas vezes que pelo menos uma delas você já deve ter lamentado. No entanto, do mesmo modo que matou o teatro quando nasceu e o teatro não morreu, a sétima arte também tem seus momentos de fênix e está por aí batendo asas. Só que chega um dia em que alguém descobre o calcanhar de Aquiles e pronto, o cinema vai pra coleção retrô das lojas de quinquilharia da lembrança.
Uma primeira ameaça aconteceu no início da década de 1910, quando os longas surgiam e os conservadores questionavam: a verdadeira função do cinematógrafo não seria juntar jornal e duas histórias em pouco mais de uma hora de projeção? As narrativas com mais de uma hora, e depois mais de duas, mostraram que o cinema podia cativar a paciência e manter a atenção do público. Sobreviveu.
Outro temor foi quando o som chegou às telas. Sem se reinventar, a sétima arte veria seu fim em breve. Quem não durou foram alguns atores, que tinham empatia de boca fechada, mas não podiam soltar a voz que irritariam os novos ouvintes da sala escura. O cinema cantou e gritou pra quem quis e continua fazendo isso, agora com surround. Sobreviveu.
Em tempos de guerra, muitos acreditaram que o cinema só serviria pra ver jornal, notícias do conflito onde quer que ele explodisse. Ledo engano, caro leitor: depois dos cine-jornais, os filmes alentavam temores e encantavam os aflitos que não estavam no front. E todos os embates do mundo se tornaram temas de histórias documentais ou ficcionais. Sobreviveu a mais uma guerra.
A televisão foi a grande vilã: o cinema acontece dentro de casa! Por que sair do seu sofá quentinho se tem filme ali? Convenhamos que nada se compara ao ritual de entrar na sala, de sentir o impacto daquela imagem enorme quase caindo em cima de você, de compartilhar sensações com a audiência. Mesmo assim, um enorme temor fez com que o cinema apelasse pro 3D, o que a televisão não conseguia.
Alguns críticos, como Godard, afirmaram que o cinema tinha morrido quando cedeu ao ritmo televisivo (mas ele mesmo foi fazer televisão depois). Serge Daney tem uma fala interessante sobre o período: ‘‘Muitas vezes penso nos filmes como se fossem moças que vão ganhar a vida na televisão. Elas nascem num mundo em que precisam seduzir (a sala de cinema) e depois seguem num mundo onde ajudam a ‘tapar buracos’ (na telinha). Os decisores da televisão são como os cafetões, mas eles mesmos dependem economicamente da verdadeira máfia: a publicidade.’’
O diretor Peter Greenaway decretou, em 2007, que o cinema morreu no dia 31 de setembro de 1983, quando o controle remoto chegou aos lares. A partir de então, a sétima arte deveria se tornar interativa, uma arte multimídia. E talvez uma arte ainda mais inovadora, porque o diretor inaugurou uma nova data no calendário gregoriano.
Outra análise vem do diretor e produtor Jean-Jacques Beineix. Quando a TV entrou no ramo de produção, muitas parcerias criaram dependência desse capital e o produtor deixou de ser um questionador do projeto pra tornar-se seu dono. Afirma-se o modelo em que a criação, ao ficar a serviço da economia e da burocracia, morre, por isso o cinema vai junto.
Esse lado refém da sétima arte é claro na estrutura de mercado que amarra os filmes às estratégias de lançamento. Os canais de TV se tornam os grandes facilitadores dessa divulgação, dentro e fora da telinha, tornando o circuito cada vez mais fechado. No entanto, o cinema não morreu com isso, pois a internet ajuda na salvação.
Só que a internet é o grande canal da pirataria e as pessoas veem até os lançamentos em casa. Pronto, mais uma morte do cinema. Só que não, porque o cinema veio com uma novidade (?) digital: o 3D! E as salas voltam a ficar cheias e as pessoas ainda pagam mais caro. No mundo online, internautas compartilham seus trabalhos feitos com as novas tecnologias de socialização da criação e o cinema persevera, porque os festivais e os cineclubes continuam levando as pessoas pras salas escuras. O cinema vive!
Até que vem o celular. Ele veio antes, mas a educação pra ele não chegou junto ou ainda. Em todo lugar, com pessoas de todas a idades, o clima do filme blockbuster ou do cult daquele diretor que tinha prometido não filmar mais ganha o toque do aparelho em algum lugar do cinema. Mesmo com os avisos na tela, mesmo com avisos vindos do próprio público, volta e meia um aparelho acende e começa a gritar que odeia cinema. As outras mortes foram superadas porque o público queria ver cinema. Agora vem dele a vontade de matar.