Seria o homem capaz de se apaixonar por um computador? Digo homem no sentido lato, ser humano. De acordo com a ficção científica, a resposta é sim, mas na realidade… bem, os céticos ririam. Depois de uma pesquisa no Japão, isso saiu do campo das possibilidades, pois muitos homens declararam ter namoradas virtuais e, principalmente, afirmaram que não as trocariam por uma moça real. Ouvi o leitor pensar de forma indignada ou a voz é minha mesmo?
No cinema, o último sucesso desse tipo foi Ela, do (esquizofrênico?) roteirista e diretor Spike Jonze, responsável por Adaptação, pérola metalinguística. Em Ela, Theodore, personagem de Joaquin Phoenix, se apaixona por Samantha, que tem a voz de Scarlett Johansson e é, na verdade, apenas a voz do sistema operacional. A constatar pelos inúmeros cidadãos que vivem colados em seus iPhones, pode-se dizer que Siri desperta paixões em igual monta, o que diminui o absurdo do filme.
O primeiro longa que me marcou sobre o assunto foi Amores eletrônicos, visto na infância e que logo me cativou. Também pela história, que na juventude ganha méritos quando previsível, mas sobretudo pela trilha sonora, que tem Bach como protagonista. Foi ali que começou uma procura por obras do compositor e que até hoje figura entre os melhores já percebidos pelos ouvidos que escutam o teclado para este texto.
A história é banal: um vizinho se apaixona pela vizinha. Ele tem um computador, ela toca violoncelo. Um dia, bebendo sozinho no apartamento enquanto trabalha, ele deixa cair champagne sobre o teclado do computador, e parece não ter secado em tempo hábil: a princípio, nada acontece, mas no íntimo do aparelho, a bebida faz com que ele ganhe vida própria (que metáfora…). Quando o homem consegue ligar o computador, a máquina se apresenta: Edgar.
Quando o vizinho sai pra trabalhar, Edgar fica sozinho em casa e acontece a mágica: a vizinha ensaia em seu apartamento e o duto de ar interliga as moradas. Quando ela começa com os acordes de Bach, ele se programa pra acompanhar a música e pronto, um violoncelo e um computador tocando juntos o Concerto para Anna Magdalena Bach. Na época, nem sabia o nome da música e coloquei o gravador na frente da caixa de som da TV pra gravar, depois de já ter ouvido tantas vezes. No walkman, outras várias repetições eram possíveis da música que batizei de Instrumental, mas bem depois, quando encontrei a trilhaem CD, vi que a chamavam The Duel. Dizem, inclusive, que a música é de Christian Petzold.
O vizinho, no entanto, percebe que alguma coisa está errada quando chega em casa e a vizinha elogia seu acompanhamento da música. Ele sabe que foi Edgar e vai conversar com a máquina. Está construído o triângulo amoroso, pois a vizinha se apaixona pelos dois, mas acha que é um só, até que chega mesmo a conhecer Edgar. O computador, inclusive, sonha com ovelhas, numa referência direta ao conto de Philip K. Dick que inspirou Blade Runner.
Edgar, ao contrário do Passageiro do futuro, inspirado em conto de Stephen King, não consegue atuar com mais intensidade no mundo físico e o embate entre os dois apaixonados reside, quase o tempo todo, no nível verbal. É quase uma disputa entre dois amigos, pra ver quem vai ficar com a menina mais bonita da turma.
Se contar que, ao contrário dos obcecados japoneses, no filme vence a sensatez, e contar não estraga a história, que de surpresa tem pouco. No entanto, é um filme gostoso de 1984 que pode divertir e mesmo levar a discussões ainda hoje. Nem tão distópico quando a história 1984, tem uma semente de três décadas atrás do que acontece hoje, e um recado para que olhemos para Ela e outros afetos informáticos que Hollywood nos apresenta com olhares mais críticos.