CINE VENEZA | KINOS

Semana passada entrei numa clรญnica de exames ร  espera de um milagre. Para todo lugar que olhava, do hall de entrada aos cantos das paredes, estava ร  espera de um milagre. Quando me chamaram para a sala de exame, continuava minha procura, um tanto nostรกlgica. A conversa com a mรฉdica foi boa, o exame mostrou que o corpo responde numa boa aos estรญmulos do tempo, mas a alma seguia procurando pelo รบltimo filme que vi onde antes da tela de ultrassom havia uma de cinema.

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Quando pequeno, acompanhado dos meus pais e do meu irmรฃo numa matinรช de domingo de A Dama e o Vagabundo, vestรญamos preto na fila daquele cinema. Em alguns parcos lugares do Brasil, grupos pequenos trajavam verde e amarelo, atendendo ao pedido do entรฃo presidente Fernando Collor. A maior parte do povo estava de preto nas ruas, como deveria estar tambรฉm agora, nos tempos anti-democrรกticos que aquela sala de cinema nรฃo vรช mais.

Em outros tantos cinemas da cidade, pode-se ver Aquarius, preterido da indicaรงรฃo brasileira ao Oscar por ter uma protagonista chata e uma temรกtica datada, entre outros problemas, como destacou o isento Marcos Petrucelli, indicado pelo governo ilegรญtimo. Naquela sala ali, alรฉm dos exames, repousa o passado, ou a lembranรงa de uma viagem triste de anos antes a Petrรณpolis. Meu pai havia deixado o carro num estacionamento e nos encontramos na rua; quando voltamos ao veรญculo, ele era mais um entre tantos numa linda sala antiga de exibiรงรฃo abandonada. O chรฃo de tacos coberto de marcas de pneus, as paredes escuras pelo pรณ da cidade, a tela ausente, incapaz de tolerar esse descaso.

De volta a Juiz de Fora e ao cinema que virou clรญnica, lembro das repetidas vezes em que fui ver Coraรงรฃo Valente, todas de tarde, na รบltima vez com apenas dois outros espectadores. Nas trรชs, mas sobretudo na primeira, fiquei tenso na cena final a ponto de sentir o encosto da cadeira ranger e depois me culpei por imaginar ter estragado o assento. Quando voltei, outro dia, sentei-me aliviado no mesmo lugar por constatar que tudo estava bem, o ruรญdo talvez fosse da tensรฃo da prรณpria cadeira diante da histรณria.

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Meu bisavรด ia a um cinema perto de casa, hoje extinto, o Rex, e sentava-se diariamente na mesma poltrona: embaixo do segundo ventilador, do lado esquerdo. Via o noticiรกrio e os filmes e tinha aquele lugar como seu, a ponto de pedir licenรงa a quem sentasse ali antes dele. Gentilmente, claro, e o outro cedia o lugar sem brigar. Hoje, mesmo com lugar marcado (o que รฉ uma enorme bobagem, sobretudo quando se visita a sala pela primeira vez), a troca รฉ feita com tentativas de assassinato por olhares ou palavras.

Quando vou ao cinema tambรฉm tenho meus lugares cativos, e uma das salas que mais frequentei na infรขncia e na juventude foi aquela que virou clรญnica. Quando estava ร  espera do exame, me situei em meio ร  nova parede bege e imaginei onde ficava minha cadeira. Passei longe dela, eram muitos corredores entre nรณs desta vez. Menos que antes, mas agora com paredes. Me vi sentando sozinho antes da sessรฃo, conferindo se estava diante da pilastra que podia ser vista embaixo da tela. Ficava duas fileiras ร  frente do corredor central, para evitar passantes incรดmodos em busca de banheiro e pipoca.

Nesse mesmo cinema sentei em vรกrios lugares, e quase no chรฃo por algumas vezes, como em Independence Day ou Titanic (primeira fila, coladinho na tela, enorme e alta) ou Mortal Kombat na quarta-feira, dia do desconto: tinha tanta gente que o chรฃo parecia a tambรฉm extinga geral do Maracanรฃ, mas com todos sentados. E direito a porradaria no meio do filme, a vida imitando a arte, mas sem os poderes de Hayden Highlander Lambert.

Das muitas histรณrias que aquela sala, inaugurada em 1987, faz lembrar (chegada antecipada para ver Star Wars I; cartaz de Clube da Luta visto do prรฉdio em frente na vรฉspera da estreia; pacote de balas da bomboniรจre, quase tรฃo ansiado quanto o filme numa determinada idade), a รบltima foi a adaptaรงรฃo do romance de Stephen King. ร€ espera de um milagre ficou um bom tempo em cartaz, mas nem o talento Tom Hanks ou poder de John Coffey (โ€˜โ€˜fala como coffee, mas escreve diferenteโ€™โ€™), personagem de Michael Clarke Duncan, conseguiram curar a doenรงa que tem matado os grandes cinemas de rua.

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