Por que meu Caderno de Criatividade se chamava Steven Spielberg? No dia da escolha do nome, estava em casa e pedi ajuda pra minha mãe. Ela corrigia provas sobre a mesa, diante da televisão, e parou pra me ajudar. Conversamos um pouco, ela me deu umas dicas e voltei pro quarto pra pensar. Foi ela mesma quem veio com a notícia de que em poucos minutos começaria a passar Contatos imediatos do terceiro grau na Sessão da Tarde. Se você gosta do Spielberg, comentou, tem que ver esse filme e pode dar o nome dele pro seu caderno. E ainda começa com um comentário sobre esse filme. E assim fiz: com uma breve ficha técnica, inaugurei o caderno Steven Spielberg com um texto sobre Contatos imediatos. Kinos em gestação?
Foi a primeira vez que escrevi sobre o Spielberg, de quem até então acompanhava os filmes e as notícias. Foi a primeira vez que dei esse passo em relação ao cinema, uma caminhada pra ficar adulto, mas sem perder o tom infantil, o que Spielberg conseguiu em alguns filmes. Vindo da televisão, o jovem diretor precisava mostrar serviço e tinha que contrapor a cara de menino com temáticas adultas. Ganhou fama com Encurralado, filme para TV que cria o suspense com câmera subjetiva, ritmo narrativo e, claro, o tamanho desproporcional do caminhão perto do carrinho. Quatro anos depois ele aprimoraria a técnica em Tubarão, que o consagrou como Midas de Hollywood ao gerar filas pra, por quase todo o filme, não se ver o protagonista. Entre os dois está Sugarland Express, outra perseguição, nesse caso no estilo Bonnie and Clyde.
Com Contatos imediatos do terceiro grau, o diretor manteve o jogo com o que não pode ser visto, desta vez envolvendo desenhos, modelos em purê de batata e em argila, até encontrar François Truffaut e os acordes clássicos de John Williams. A cena da porta abrindo pra luz é uma das mais célebres da ficção científica e nem a computação atual sob tutela de Jeff Nichols conseguiu chegar aos pés contando a mesma história em Midnight Special. Spielberg fala sério sem perder o jogo, diverte e segura o espectador no tom que mostrou desde o início da carreira, mas faltava, como alguns criticavam, fazer pensar.
Até então, a crítica não incluiria Spielberg entre diretores politizados, mas isso muda em 1985 com A cor púrpura. Acima de tudo feminista, a história trata da mulher dentro da sociedade e de um grupo social dentro de outro, como ocorre com os negros numa cultura racista branca. O Spielberg político volta em outros filmes com prioridade em valores humanos, como a jornada do jovem (Batman?) em busca dos pais em Império do Sol ou em Ghost… digo, Além da eternidade e os incêndios na floresta.
A equação se inverte quando, mesmo com o protagonista humano, o lado político se torna mais importante em A lista de Schindler. No cinema, fui com minha irmã ver mais um Spielberg, provavelmente, como se constatou, o Spielberg do Oscar; mas não era apenas mais um. O incômodo do preto e branco foi logo abstraído perto de tantos outros, que acompanhamos mudos, até na cena da mulher nua sobre a cama do comandante do campo de concentração. Naquele momento minha irmã susurrou: um seio no filme do Spielberg!? Essa frase é nosso rito de passagem.
O diretor volta à Segunda Guerra pra resgatar outro Oscar e o Soldado Ryan, conquistado nos trinta primeiros minutos do filme, na Normandia, mas sua seriedade também volta à questão do preconceito. Em Amistad, além da magnífica fotografia de Janusz Kaminski, a problemática racial é tratada no formato ‘filme de tribunal’, tão caro aos americanos. Com os altos e baixos vividos pelos imigrantes, a questão da comunicação é o ponto forte da discussão, pois antes de julgar é fundamental entender o que se julga e tudo vai e volta em função dessas possibilidades.
De volta à ficção científica, Spielberg bebe em um dos mais prolíficos autores do final do século: Phillip K. Dick. Minority Report é um jogo de tempos e realidades em que Spielberg se faz de sério com o ritmo da criança de antes. Um jovem que se mostra também em Prenda-me se for capaz, exercício de sutilezas e referências que é um passo pra algo mais refinado. Com o mesmo Tom Hanks, O terminal é um dos melhores trabalhos do diretor, com a sensibilidade desenvolvida pelo tempo, a riqueza narrativa despretensiosa de um filme que não nasceu pra ser blockbuster e o senso de humor refinado, mesmo que amparado em clichês, desenvolvido desde Indiana Jones e a última cruzada. É o último exemplo de que a criança soube crescer.