O SPIELBERG CRIANÇA | KINOS

Steve (como assinou no primeiro curta) Spielberg começou adulto e virou criança, como mostra Encurralado ou A louca escapada (por que não deixaram Sugarland Express?). No entanto, seguindo critérios biológicos, vou começar essa sequência de três textos pelo lado infantil, principalmente porque o meu faz parte da história. Por mais que ver um filme no cinema seja um exercício individual, a ida pra sala e o comentário do filme são trabalhos sociais. Filmes criam relações e muitos dos filmes do Spielberg me são marcantes não apenas pelos filmes, que me fizeram apreciar o diretor, mas pelas pessoas ligadas a eles.

092 - Cadeira

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Na quinta série, a professora de Português, querida TB, pediu que criássemos Cadernos de Criatividade. Eram cadernos sem pauta que seriam entregues a ela quinzenalmente com criações nossas. Ninguém era obrigado a fazer nada específico, desde que tivesse alguma novidade pra entregar no prazo. Havia desenhos, histórias, colagens, de tudo um pouco entre os colegas e a diversão durou os dois anos que tivemos aula com ela. No início, tínhamos que batizar o caderno, colocar nosso nome e o dele na primeira página, e lá estava o meu, ao lado do de Steven Spielberg (que escrevi com dois Ls).

Não sei se por questão de família ou por apreço histórico, Spielberg sempre teve forte ligação com a Segunda Guerra, o que lhe permitiu lançar diferentes olhares sobre ela. Um deles veio na forma de um besteirol chamado 1941, uma guerra muito louca, lançado em 1979 e que, exceto pela música de John Williams (uma marcha divertida que remete a A ponte do Rio Kwai), não vale mais do que pipoca com alguns sorrisos.

Pouco depois ele mostrou que era possível se divertir com o conflito mundial, mas precisava de um bom personagem. Conforme Claude Baignères, a mistura de James Bond com d’Artagnan e um pouco de Jacques le fataliste fizeram de Indiana Jones um herói completo. Essa opinião compartilho com meu pai, companheiro de cinema e vídeo nas várias vezes que assistimos e continuamos assistindo as desventuras do arqueólogo americano (ganhei de presente de Natal dele a caixa com os filmes e os extras da trilogia).

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São três filmes que se desenvolvem com a perfeição do bom senso de humor. O primeiro filme apresenta o personagem, suas relações humanas, seus ideais, tudo numa grande aventura em prol da Arca da Aliança, cobiçada pelos nazistas. O segundo filme já conhece o personagem, então pode aprimorar a história, isolada do tempo e do espaço comuns ao professor. Entre crenças religiosas e a quase perda do coração, um banquete de cobras e macacos sensacional. A chave de ouro vem de outro grande personagem: o pai. Se o filho é conhecido, nada melhor para caçoar de seu heroísmo, uma forma divertida de desconstrução do mito, mas sem tirar dele as características.

Um dos filmes mais importantes da carreira de Spielberg é E.T., o extra-terrestre. O visitante tem a altura do menino e a câmera conta a história do ponto de vista deles, o que ajudou Spielberg pra deixar as crianças à vontade. Aliás, o diretor ficou conhecido por saber lidar bem com o elenco infantil, o que fez bastante neste em outros trabalhos. Outro relato interessante do filme vem da equipe, que chorou com a despedida do E.T., pois o longa foi filmado cronologicamente, por escolha do diretor, pra que todo o clima da história fosse real. Funcionou, menos pro meu avô, com quem vi o filme pela primeira quando passou na TV. A culpa não era do filme, meu avô dormia quase sempre.

Crianças adoram dinossauros e Spielberg já tinha o troféu da bilheteria de Tubarão há quase duas décadas, precisava colocar outro no lugar. Jurassic Park misturou a tensão de tudo dando errado com os efeitos especiais da ILM pra levar multidões à sala escura. Fui com minha irmã, com quem disputei quantidade de idas pra ver na telona, mas ela ganhou. Com ela tenho cumplicidade spielberguica (existe isso?) e mesmo nos filmes que não vamos juntos acabamos comentando o que gostamos e o que não. O mundo perdido vimos juntos também e nos divertimos até com o absurdo do racha em San Diego entre carro e T-Rex.

Outras duas brincadeiras de Spielberg são Hook e Tintim. No primeiro, se divertiu com o amigo Robin Williams ao tentar levar Peter Pan, adulto, de volta à Terra do Nunca pra resgatar os filhos, ou a própria infância. Spielberg, indo e vindo, não tinha perdido a sua ainda e deixa isso claro enquanto trabalha Hook, Jurassic Park e A lista de Schindler na mesma época. Tintim, duas décadas depois, é o mergulho no mundo dos quadrinhos belgas levado às telas num formato até então inédito pro diretor.

As aventuras de Tintim me fez lembrar de dois comentários. O primeiro do próprio Spielberg, que, na revolução digital promovida inclusive pelo amigo George Lucas, disse que filmaria em película até o último trabalho e, pra isso, comprou material suficiente e guardou (essa parte não sei se é verdade, mas é interessante). O digital não tinha (não tem?) a mesma qualidade da película, mas mudou bastante e Tintim deixa claras as possibilidades do novo formato. A outra observação foi feita por um professor. Ele disse que a Europa via Spielberg, mas a crítica europeia não o respeitava; talvez Tintim fosse mais uma tentativa de ganhar elogios, pois o herói é patrimônio dos quadrinhos francófonos e precisa ser tratado com seriedade. Tanto foi que vai ganhar continuação.

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