120 ANOS DE CINEMA – 1936-1945 | KINOS

Acabou a brincadeiraโ€ฆ Ou ela estaria apenas comeรงando? O cinema tem mais um marco nesta dรฉcada e pesquisadores dizem que ele entrou na modernidade. As formas de jogar som e imagem (com cores!) apresentam filmes autorais que representam maturidade e risco ao mesmo tempo. Fazer um longa-metragem de animaรงรฃo? Comeรงar a filmar sem ter o final? Ou sem saber quem vai representar o protagonista? Tudo isso aconteceu na dรฉcada marcada pela Segunda Guerra Mundial, em que muitos diretores europeus migraram pros Estados Unidos e levaram a linguagem afiada contra o nazismo pro lado de lรก; mas ela voltava, ainda bem. E nasce o cinema noir, de forte influรชncia literรกria, mas com caracterรญsticas prรณprias.

1936
Tempos modernos (Charles Chaplin, 1h27โ€™)
083 - Tempos modernosChaplin em meio ร s engrenagens รฉ uma das cenas mais vistas da histรณria do cinema, e nรฃo em vรฃo: representa o que o mundo pรณs-industrial faz com quem nรฃo consegue olhar pro lado. ร‰ representaรงรฃo perfeita do que os amigos do livro Encontro marcado, de Fernando Sabino, chamam de โ€˜ser apanhadoโ€™. Se o sistema controla vocรช, bemโ€ฆ Os talkies jรก tinham quase dez anos e o diretor insiste em um filme quase mudo, comprovando a fala de Jean Cocteau ao dizer que Chaplin รฉ o rir em esperanto. Quase mudo porque o personagem esboรงa um canto no cabarรฉ, mas nรฃo diz palavras conexas, num prenรบncio do que faria em 1940. Ao espectador crรญtico, uma surra pra acabar com os automatismos (ou os botรตes das senhoras nas ruas podem gerar grandes constrangimentos).

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1937
Branca de Neve e os Sete Anรตes (Walt Disney – produtor -, 1h23โ€™)
083 - Branca de NeveSรฃo seis diretores listados no filme, mas o autor da ousadia merece o crรฉdito. Os desenhos animados nรฃo passavam de minutos atรฉ o dia em que Branca de Neve comeรงou a conversar com passarinhos, ou melhor, a cantar com eles. Na mรบsica, ela dizia que queria se apaixonar, assim como os Anรตes, em sua mรบsica mais famosa, diziam que terminaram o trabalho e voltavam pra casa. Nรฃo bastasse o filme inteiro ser um desenho, as mรบsicas ganham funรงรฃo narrativa, nรฃo dรก pra pular sem perder a histรณria. E nem a voz chata da protagonista (Disney parecia especializado nisso, mas nรฃo foi ele quem dublou) tira a forรงa das imagens. Desde 1933 foram desenhadas mais de cem mil quadros e organizados numa mesa Multiplane, novidade pra รฉpoca que podia fazer a passagem entre as cenas pra prรฉ-ver o resultado. Walt Disney passa de artesรฃo a industrial (e depois a dedo-duro de comunista, mas isso รฉ outra histรณria e da dรฉcada seguinte).

1938
Alexandre Nevski (Sergei M. Eisenstein, 1h51โ€™)
083 - NevskiA era de ouro do cinema soviรฉtico se encerra com esse filme. Outros grandes virรฃo, mas a grande produรงรฃo que influenciou a sรฉtima arte se perde depois deste encerramento. Mais uma grande produรงรฃo do mago russo, em que um terรงo do filme รฉ uma batalha no geloโ€ฆ filmada no verรฃo. Sim, o frio รฉ falso, mas ele nรฃo deixa a gente perceber. Tudo no filme รฉ premeditado, dos elementos tรฉcnicos ร  movimentaรงรฃo das pessoas, sobretudo a tentativa de manter o paralelo entre as imagens de Eduard Tisse e a mรบsica de Sergei Prokifiev. Entรฃo imagine o desespero de Eisenstein quando tomou conhecimento do resultado dessa histรณria, contada por Amengual: Stalin era fรฃ de cinema e queria ver o que Eisenstein estava fazendo; como o diretor praticamente se mudava pra sala de ediรงรฃo pra fiscalizar cada segundo do trabalho, estava dormindo quando o secretรกrio foi buscar a cรณpia e nรฃo viu que ele esqueceu uma bobina: Stalin adorou e disse que o filme era perfeito, depois Eisenstein nรฃo conseguiu inserir o que faltava, pra nรฃo contrariar o Estado.

1939
E o vento levouโ€ฆ (Victor Fleming ou David O. Selznick?, 3h58โ€™)
083 - E o vento levouDepois de passar por vรกrias mรฃos, Fleming assumiu a direรงรฃo, mas quem mandava mesmo era Selznick, num tรญpico filme de produtor. A forรงa de Selznick era tanta que, quando as filmagens comeรงaram, foram feitas apenas cenas com figurantes porque a protagonista ainda nรฃo havia sido escolhida: o produtor foi apresentado a Vivien Leigh logo depois de iniciados os trabalhos. Em contraste, o ano tem um grande filme de autor, No tempo das diligรชncias, com magnรญficas tomadas de paisagens e histรณria inspirada em Maupassant. Foi o filme que Orson Welles assistiu 39 vezes antes de entrar em estรบdio pra fazer seu primeiro longa e entrar pra histรณria do cinema. Entre esses dois filmes, a escolha caiu sobre Vento porque o diretor teve outra grande obra lanรงada no mesmo ano, apoteose do kitsch atรฉ entรฃo: O mรกgico de Oz. Quem nรฃo conhece (as infinitas versรตes de) Over the Rainbow? Tambรฉm deste ano รฉ o โ€˜desmoralizanteโ€™ Regra do jogo, de Jean Renoir, queimado em 42 e restaurado em 56, e a brincadeira publicitรกria โ€˜โ€˜Garbo riโ€™โ€™ para anunciar a comรฉdia Ninotchka, de Ernst Lubitsch.

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1940
Fantasia (Walt Disney – produtor -, 2h05โ€™)
083 - FantasiaMais uma lista de diretores, mas o crรฉdito รฉ do dono do estรบdio de apostar nessa insanidade de colocar desenhos pra danรงar. O aprendiz de feiticeiro levanta as antolรณgicas ondas e os hipopรณtamos mostram o que รฉ leveza nos pas-de-deux com crocodilos. No final, um fantรกstico exercรญcio expressionista quando o anoitecer cai pela cidade. Os desenhos danรงam e Chaplin fala alemรฃo, parodiando discursos de Hitler em O grande ditador, numa sรกtira proibida na Alemanha jรก em guerra e governada pelo bigodinho nazista. Tambรฉm em solo americano, John Ford dรก aula de imagens em preto e branco com Vinhas da ira e Hitckcock ensina em Rebecca que a percepรงรฃo do espectador capta o incรดmodo, mas nem sempre consegue explicar: se um personagem nรฃo se desloca, apenas aparece parado no lugar, algo estranho deve estar acontecendo. Gรชnio.

1941
Cidadรฃo Kane (Orson Welles, 1h59โ€™)
083 - KaneRe-invenรงรฃo do cinema? Nem tanto, porque Welles nรฃo mostrou novidades ali, mas soube ligar tudo de forma tรฃo sensacional que este รฉ considerado por muitos o melhor filme jรก feito. Truffaut resume bem o impacto que a obra causa: โ€˜โ€˜o cinema mudo nos trouxe grandes temperamentos visuais: Murnau, Eisenstein, Dreyer; o cinema falado trouxe um sรณ, um รบnico cineasta do qual o estilo รฉ imediatamente reconhecรญvel em trรชs minutos de filme, e seu nome รฉ Orson Welles.โ€™โ€™ A perfeiรงรฃo narrativa, o uso dos flashbacks que se mistura com profundidade de campo, a inversรฃo de valores de plongรฉe e contra, o uso peculiar de lentes (mรฉrito do diretor de fotografia, Gregg Toland) e a composiรงรฃo de planos integrados no ritmo da montagem. Mesmo assim, perde nos planos-sequรชncia de 47 ronins, de Kenji Mizoguchi. Ninguรฉm รฉ perfeito.

1942
Jogo perigoso (Ernst Lubitsch, 1h39โ€™)
083 - Jogo perigosoA dรบvida este ano estava entre o filme de Lubitsch e a sรฉrie de documentรกrios de Frank Capra Por que combatemos. Os sete filmes do italiano naturalizado americano (ou, como os americanos dizem, do americano nascido na Itรกlia) fazem uma apologia da presenรงa dos combatentes na guerra. Contando com personagens ilustres, como Mickey e Donald, os filmes combinam na montagem imagens de arquivo pra criar um discurso que essas imagens nรฃo transmitem sozinhas, numa heranรงa eisensteiniana nitidamente usada pra manipulaรงรฃo. Lubitsch, por sua vez, usa seu conhecido requinte de comรฉdia pra criar mais que um jogo perigoso entre nazistas e inimigos. Como parte da narrativa se deve a uma encenaรงรฃo teatral que pode ou nรฃo ocorrer em tempos de guerra, a questรฃo destacada รฉ o perigo de se atuar quando o limite entre real e imaginรกrio รฉ confuso. Com humor sofisticado, o alemรฃo radicado em Hollywood faz rir e pensar com verdades, num ano em que a sombra da dรบvida cinematogrรกfica diz exatamente o oposto.

1943
Casablanca (Michael Curtiz, 1h42โ€™)
083 - CasablancaUm outro nome propรญcio seria โ€˜A odissรฉia de um roteiroโ€™. Inspirado numa peรงa de teatro, ele comeรงou a ser escrito com dois roteiristas, passou pra outro e pra outro e assim atรฉ acabar nas mรฃos dos que haviam comeรงado. O mais surpreendente: quando isso aconteceu o filme jรก estava em produรงรฃo, ou seja, as cรขmeras trabalhavam. Cena a cena a obra era re-escrita e no รบltimo dia ninguรฉm sabia como seria o final. Haveria uma fuga do casal casado ou do casal romรขntico? Atรฉ terminadas as filmagens (sรณ fizeram de um final), isso era uma incรณgnita (achou que teria spoiler? deixe a preguiรงa de lado e veja o filme!). Os diรกlogos sรฃo pontuais, com boas tiradas e tomadas que destacam os exercรญcios de fotografia no quase improviso de alguns dias de filmagem. No mesmo ano, Carl Dreyer mostra longas e magnรญficas tomadas em Dies irae, contrastando com o que fez em Joana dโ€™Arc. E Jacques Tourneur realizou Cat People, que alguns tomam como filme B e outros consideram a renovaรงรฃo do fantรกstico no cinema, como afirma Martin Scorsese na sรฉrie Uma viagem pessoal com Martin Scorsese pelo cinema americano.

1944
Lifeboat (Alfred Hitchcock, 1h36โ€™)
083 - LifeboatCom o tรญtulo Sessรฃo da Tarde Um barco e nove destinos, o filme conta com roteiro de John Steinbeck e, alรฉm de um toque anti-nazista, uma histรณria de bastidor curiosa. Os noves homens estรฃo em um barco salva-vidas buscando um destino (expliquei a traduรงรฃo?) e o diretor disse ร  equipe tรฉcnica do estรบdio que nรฃo queria mรบsica no filme. โ€˜โ€˜Eles estรฃo no meio do mar, de onde viria a mรบsica?โ€™โ€™, foi a pergunta do gรชnio inglรชs. Perspicaz, o operador de som do estรบdio respondeu: โ€˜โ€˜diga pra ele ver onde estรก a cรขmera, o som vem de lรก.โ€™โ€™ย  Alรฉm desse grande filme, que vai alรฉm da piada, รฉ o ano da consagraรงรฃo do noir no cinema, com trรชs grandes obras: Um retrato de mulher, de Fritz Lang; Laura, de Otto Preminger; e Pacto de sangue, de Billy Wilder, obra sensacional depois usada por Woody Allen como referรชncia em Misterioso assassinato em Manhattan.

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1945
Roma, cidade aberta (Roberto Rossellini, 1h40โ€™)
Alguns nรฃo o consideram o primeiro, mas a maior parte dos teรณricos confirma que, mais do que Roma, Roberto Rossellini abriu o Neo-Realismo pro mundo, e com roteiro de Federico Fellini. Sรณ que precisou de mais do que uma impactante Anna Magnani pra isso. Sem dinheiro, chegou a usar filme fotogrรกfico, colado frame a frame, pra realizar algumas cenas, alรฉm de moradores da cidade e tomadas feitas em plena guerra, que chegava aos รบltimos suspiros. Tudo isso pra nรฃo ser bem recebido na Itรกlia. Claro que nรฃo ia ser, o paรญs vivia aquilo nas ruas, nรฃo queria ver no cinema, mas o mundo aplaudiu. Do mesmo ano รฉ o รกpice do realismo poรฉtico francรชs: Les enfants du paradis. Traduzido como Boulevard do crime, que se refere ร  primeira parte da histรณria, conta com diรกlogos que beiram a perfeiรงรฃo em cenรกrios magnรญficos, no que Georges Sadoul considera a obra-prima de Marcel Carnรฉ e Jacques Prรฉvert. E Eisenstein inicia uma surpresa com a primeira parte de Ivan, o Terrรญvel, cuja segunda parte, no ano seguinte, foi proibida por Stalin por representar a face cruel do governante (sim, frase ambรญgua).

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