A vida de Frei Tito de Alencar Lima é maior que a de Antônio Marighella quando sob a pena de Frei Betto. Isso se repete diante das lentes de Helvécio Ratton na adaptação do livro Batismo de snague, lançado em 2006. Quem busca por Marighella deve, sim, procurar por esta história e complementá-la com a biografia escrita por Mário Magalhães, outra obra indispensável para compreender o que foi o Brasil sob a ditadura civil-militar. Betto, no entanto, destaca a situação dos padres dominicanos na resistência ao regime em vigor e elabora uma defesa contra injustiças nos contidas discursos a eles dirigidos.
Esta semana, um colega de teatro comentou que, jovem, frequentava um grupo de oração com dominicanos em Juiz de Fora. Houve o dia, nos anos 1970, em que policiais invadiram o lugar e bateram no grupo, cuja idade ia dos 17 aos 23 anos. Levaram tapas na cabeça e telefones nos ouvidos (quando o sujeito bate palmas com sua cabeça no meio), acusados de subversão. Talvez muitos naquele grupo não soubessem o significado de subversão, mas acredito que tenham procurado pelo de liberdade depois desse dia.
Frei Tito não foi tão feliz a ponto de levar apenas alguns sopapos. Tito conheceu o papa, como se auto-denominava Fleury, a imagem da tortura durante a ditadura. Geralmente vestindo branco, é Cássio Gabus Mendes que lhe dá vida na versão de Ratton, trazendo a frieza do torturador e levando o espectador e torcer, em vão, para que Fleury mude de vida rápido e morra o quanto antes em seu barco. Em todo lugar, de fotos a depoimentos, a imagens de Fleury, com seus olhos vermelhos de pupilas dilatadas quimicamente, dão mais asco que Gabus Mendes, que ainda assim consegue mostrar o que é a criatura.
Tito é interpretado por Caio Blat e a consequência de tudo vem na primeira cena do filme: o enforcamento. Ratton queria deixar claro, como conta em entrevista, que o filme era sobre Tito, o frade que foi torturado no pau-de-arara, que sentou na cadeira do dragão e que tentou se matar, sem sucesso, com lâmina de barbear para fugir de tudo aquilo. Foram anos de assombrações com as visões de Fleury, inclusive no exílio na França, até optar por enfrentar a indisposição divina para o suicídio e pendurar-se em uma árvore. Deus é mais misericordioso com os suicidas do que Fleury era com suas vítimas.
Amigos não faltaram a Tito, que os tinha próximos quando na prisão ou no exílio. Todo o tempo podia se corresponder com a família ou conversar com seus colegas de religião. A batalha de Tito tem outras em paralelo, como de Marighella para mobilizar a guerrilha e de Betto na ajuda para enviar procurados para o Uruguai. Marighella, mesmo que com pouca ênfase no filme, é o pilar de toda a organização, pois toda a busca por ele é que leva muitos à tortura. A morte do guerrilheiro, “inimigo público número um”, só se dá por uma série de erros, cujo início se dá no sequestro do embaixador americano, narrado por Fernando Gabeira em O que é isso, companheiro?, filmado por Bruno Barreto. A vida de Marighella também pode ganhar as telonas, com respaldo de Wagner Moura, mas ainda sem data prevista.
O olhar documental de Ratton não está ausente da película: alguns momentos de dramaticidade perdem força em função da história a ser contada. O filme é bom e deve ser assistido, mas o curioso pela história do país deve ler o livro, para se ater aos detalhes muitas vezes em uma frase pronunciada ou numa cena rápida, mas repleta de significados. Muito da tensão vivida naquele tempo pode ser percebido nos momentos em que decisões tomadas de supetão podem salvar vidas, como sair imediatamente de um apartamento ou correr sem suas posses para longe: segundos preciosos quando os militares estavam à esperita.
Ano passado, fizemos pesquisa sobre a vida de Tito quando tivemos dois desafios. O primeiro deles foi a concepção, pelo Hupokhondría, da cena Agnus Dei, cujo texto apresenta os três dias de tortura de Tito, desenvolvidos em paralelo aos sete dias da criação. A cena foi extraída de Canção de ninar (ou Faça o que tem que fazer), peça de Táscia Souza montada pelo T.O.C. (Teatro Obsessivo Compulsivo) este ano, o segundo desafio. O espetáculo traça paralelos entre três tempos de intolerância: a vida de Santa Catarina de Alexandria, a ditadura civil-militar brasileira e hoje. Diante do que a sociedade brasileira nos apresenta ultimamente, Batismo de sangue se torna filme e livro obrigatórios, principalmente para mostrar a Frei Betto que Frei Tito de Alencar Lima, ao contrário do que temia, morreu, mas não perdeu a vida.