120 ANOS DE CINEMA – 1956-1965 | KINOS

A Segunda Guerra parece ter ficado pra trás, restando a lembrança que o cinema cultiva enquanto responde aos anseios de uma nova discussão democrática no mundo todo. Na Inglaterra, o Free Cinema quer romper com padrões e criar um modo próprio de filmar. Na França, a crítica não se contenta em opinar e põe a mão na massa pra mostrar o que quer, donde surge a Nouvelle Vague. Nomes como Bergman e Fellini inscrevem-se inesquecivelmente na sétima arte e a sensualidade ganha as telas e gera tanta polêmica quanto Pasolini. Se a década parece apontar novas liberdades, termina com conflitos decorrentes da Guerra Fria e com um golpe civil-militar no Brasil. O Cinema Novo nasce apanhando.

1956
Noite e neblina (Alain Resnais, 31’)
A força poética das falas, o sorrateiro movimento da câmera em longos travellings e as imagens de arquivo misturam as cores do presente com as sombras do passado em preto e branco, neste que é um dos mais impactantes documentários sobre campos de concentração. Nos poucos minutos da obra encomendada pelo Comitê Histórico da Segunda Guerra, inúmeras sensações se confundem e todas se acumulam no estômago. Ao impacto das imagens soma-se o político, pois o ponto de partida é um campo de concentração nazista em Pithiviers, uns 80 quilômetros ao sul de Paris. Entre as imagens de arquivo, havia uma com um soldado que portava um quepe típico da guarda francesa, mostrando que não eram apenas alemães que administravam o lugar. Resnais foi convidado a apagar a imagem com guache, fazendo parecer uma madeira onde antes havia uma denúncia. Impacto diferente causaram a sensualidade de Brigitte Bardot em E deus criou a mulher e Carroll Baker chupando dedo em Baby Doll. Quando este estava em cartaz, padres ficavam na porta do cinema anotando os nomes do fiéis que entravam na sala. Era o erotismo, polêmico desde sempre.

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1957
O sétimo selo (Ingmar Bergman, 1h36’)
085 - Sétimo seloQuando a Morte joga xadrez é importante ficar atento. Fábula medieval sobre o destino, essa obra-prima sueca é um convite à reflexão. Enquanto busca respostas pra Peste Negra que assola a Europa, o homem que volta das cruzadas entende o jogo das histórias humanas que sempre esbarram no medo de morrer. Enquanto a trupe cresce, a esperança de salvação continua, mas no fim existe uma única certeza. Com fotografia sombria e um toque poético como apenas Bergman é capaz, O sétimo selo tem o tom quixotesco de jogar com o mundo, o que já não ocorre em Morangos selvagens, lançado no mesmo ano. A temática do vazio depois de uma cruzada é comum, mas são variações inigualáveis sobre o mesmo tema. Numa comédia espanhola de 2003, Torremolinos 73 (traduzido como Da cama para a fama), ao receber a câmera de uma equipe sueca pra filmar pornô, um homem estuda cinema e descobre Bergman. Homenagem peculiar. No Japão, Akira Kurosawa constrói o Castelo da Teia de Aranha em tamanho natural pra contar sua versão de Macbeth em Trono de sangue.

1958
A marca da maldade (Orson Welles, 1h35’)
085 - Marca da maldadeO filme foi feito para Charlton Heston, que pediu Welles na direção. O estúdio aceitou, mas não engoliu Welles até o final, o demitiu na pós-produção e terminou o filme como quis. Em 1998 foi feita uma re-edição, seguindo as instruções que o diretor deixou antes de morrer. Ao longo das filmagens, Welles também mudou tudo, das origens dos personagens ao roteiro, o qual re-escrevia durante o dia e filmava de noite. O resultado é um noir shakespeariano que conta (ele deve ter lido o texto de 1941) com ótimos planos-sequência. Hitchcock joga Kim Novak do alto diante de James Stewart em Um corpo que cai, com acordes clássicos de Bernard Herrmann. Na lista constantemente renovada da Sight & Sound, o filme ocupa hoje o primeiro lugar como o melhor a história do cinema. Um destaque do ano que tá longe dessa lista é Les amants, de Louis Malle, em que a crítica à nova burguesia só não é maior que o escândalo causado no Rio de Janeiro de Nelson Rodrigues, em que o longa é motivação pra muitas ações do folhetim Asfalto selvagem.

1959
Os incompreendidos (François Truffaut, 1h39’)
085 - IncompreendidosLembra do sujeito que escreveu a análise do cinema francês, alegando que havia uma certa tendência? Muitos dizem que o crítico analisa filmes porque não sabe fazer, mas François Truffaut mostrou que a crítica pode ser uma forma intensa de estudar cinema e, se preciso, mostrar como fazê-lo. Seu primeiro longa está entre os preferidos de diversos diretores e isso ocorre porque a história do jovem Antoine Doinel traz lembranças ou desejos da juventude, além da liberdade da câmera de levar o espectador a viver aquele momento, sobretudo pelas ruas de Paris. Admirador de Hitchcock, Truffaut aproveita a chance pra aparecer no filme, e faz isso duas vezes, não bastasse a história ser fruto de experiências pessoais. O filme é dedicado a seu pai cinematográfico, André Bazin, que morreu no dia em que a câmera foi disparada a primeira vez. Bazin foi um dos principais incentivadores do que viria a se tornar a Nouvelle Vague, inaugurada no mesmo ano com Nas garras do vício, de Claude Chabrol, e Hiroshima mon amour, de Alain Resnais, representante da Rive Gauche do cinema francês (os que já faziam cinema e seguiram os rumos da nova onda).

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1960
Acossado (Jean-Luc Godard, 1h30’)
085 - AcossadoConsiderado o filme-modelo da Nouvelle Vague, sua principal característica são os raccords, os cortes entre as cenas que levam o espectador a preencher o espaço ou o tempo ausentes. O fato é: Godard achou o primeiro copião do filme muito longo, mas não queria suprimir cenas, por isso cortou segundos no início e no fim de cada plano, tornando a narrativa rápida e dinâmica, num ritmo sincopado herdado pelas décadas seguintes. Quem quiser conhecer Roma pode flanar por La dolce vita e encontrar Anita Ekberg banhando-se de noite na Fontana di Trevi. É a forma de Fellini contar variações sobre o mesmo tema e inspirar Paolo Sorrentino, que o homenageia em A grande beleza, de 2013. Ainda na Itália, a ópera marxista Rocco e seus irmãos dá uma aula de roteiro e retrata dilemas nas relações fraternais quando a paixão entra em jogo. Outra aula, nesse caso de psicologia e cinema, é dada por Hitchcock em Psicose.

1961
Shadows (John Cassavetes, 1h27’)
085 - ShadowsAntes de Glauber Rocha falar da câmera na mão e da ideia na cabeça, John Cassavetes entrou num apartamento só com a câmera e deixou a cabeça funcionar. A câmera era uma célebre 16mm, num tempo em que o cinema usava 32mm, e a motivação e os atores estavam lá. Diante de cada estímulo do diretor, o elenco improvisava, carregado de entrega. No momento da experimentação livre, o longa se destaca por romper com o padrão estabelecido nas décadas anteriores e coleciona as cenas de forma organizada na montagem. A primeira versão do trabalho foi perdida, mas uma segunda foi construída e circula até hoje. Pelo menos Cassavetes montou o que havia perdido, não fez como Alain Resnais, que deixa o espectador encaixar as peças no labirinto narrativo O ano passado em Marienbad. Resta o aplauso a Michelangelo Antonioni, que deixou a desconstrução no casamento dos personagens de A noite.

1962
Cléo das 5 às 7 (Agnès Varda, 1h30’)
085 - CléoO filme é basicamente a vida de Cléo durante duas horas. Ao acompanharmos esse momento em tempo quase real, que vale o destaque do filme, nos deparamos com a sensibilidade de uma cantora que está a poucos minutos de buscar um exame que ela acredita mostrar um câncer terminal. Tudo ganha a perspectiva ambígua durante essa hora e meia que antecede o resultado, com a ideia da morte iminente indo e vindo conforme os encontros, tudo no ritmo musical que pauta a vida da personagem. Musical é também Jules e Jim (ou Uma mulher para dois), história de amizade entre dois homens e uma mulher num pas-de-trois em que a câmera orquestra o ritmo. Outro exercício de sensibilidade do ano, assim como o de Truffaut, é o último trabalho de Yasujiro Ozu, O gosto do saquê, quando o pai tenta casar a filha que optou por cuidar dele. Três histórias pessoais com parâmetros diferentes de relações com o outro, três abraços cinematográficos, por vezes com tapinha nas costas.

1963
Oito e meio (Federico Fellini, 2h18’)
085 - Oito e meioQual foi o artista que não sentiu bloqueio em algum momento da criação? Federico Fellini teve muitos e os relata nessa autobiotravia (assim mesmo, de trava), em que um diretor de cinema é atormentado pelo passado. Quando não são os antigos colaboradores em busca de emprego, são as lembranças e os tormentos que bloqueiam novas ideias, num filme em que a palavra meta-cinema ganha novas proporções. Quando Woody Allen fez seu nono filme, considerou o oitavo e meio, porque o primeiro não é autoral, e fez homenagem ao artista italiano em Memórias. Antagônicos são Luchino Visconti em O leopardo, no qual esbanja perfeição e minúcia ao pintar cada cena com detalhe (destaque pro baile, impecável), e Alfred Hitchcok em Os pássaros, no qual aprendeu a lidar com improvisos dos atores, pois muitos ficavam ainda melhores que as cenas marcadas. No entanto, nenhum improviso foi tão bom quanto o da Baleia em Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos: minutos de aplausos em Cannes.

1964
Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 2h05’)
085 - Deus e o diaboAntes de o Brasil perder o respiro de democracia que havia conquistado, a intelectualidade estava efervescente e produzindo em diversas áreas. Dessas discussões surgiu o Cinema Novo, inspirado nas vanguardas europeias, mas com nosso toque tupiniquim. Glauber Rocha é considerado o maior representante do movimento e grande propagador do discurso que ele mesmo denominava de ‘estética da fome’. Uma fome que ganhou novas proporções com o novo regime e gerou outros apertos pros produtores, mas não sua derrocada. Se os brasileiros eram calados, os franceses cantavam: Os guarda-chuvas do amor, de Jacques Demy, mostra que um musical pode ir além dos números coreografados em meio à história falada. Todo o filme é cantado, com a constante música de Michel Legrand sem pausas para números. Sergio Leone inaugura o Western Spaghetti com Um punhado de dólares e 007 contra Goldfinger se torna emblemático na trajetória do herói inglês.

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1965
O demônio das onze horas (Jean-Luc Godard, 1h55’)
085 - Pierrot le fouNa linha fugitiva de Acossado, Godard leva seu Pierrot pela costa mediterrânea em constantes deslocamentos ao lado de Marianne. Se envolvem em tráfico de armas e numa trama política diretamente ligada ao conflito na Argélia, por isso nunca sabem onde estarão no instante seguinte. A câmera também parece ter essa dificuldade e acompanha as súbitas mudanças do casal, transmitindo ao espetador a sensação de que o filme é construído à deriva, conforme as escolhas dos personagens. No mesmo ano, Godard vai o futuro mostrar como seria o mundo governado por computadores em Alphaville, onde as relações pessoais se tornam mais complexa em função do novo contexto. É também o ano do insano Repulsa ao sexo, de Roman Polanski, primeiro da chamada Trilogia do Apartamento. Este, aliás, é o protagonista, pois o diretor queria dar a impressão de que as proporções do lugar mudavam e pra isso lidou com lentes e cenários diferentes. Catherine Deneuve quase enlouqueceu de verdade ao final das filmagens.

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