Com grandes filmes vêm grandes responsabilidades, dizia o sábio Tio Sam, digo, Tio Ben. E quem melhor pra mostrar isso do que Griffith? São deles os filmes que marcam a transição da infância pra fase adulta da sétima arte, o vestibular do discurso cinematográfico. Depois de uma overdose de críticas de racismo sobre seu Nascimento de uma nação, mais do que apresentar argumentos explicando que apenas contou a história americana, partiu pra outro filme, destaque logo a seguir nesta lista. O impacto da Grande Guerra, como os franceses chamam o conflito de 14 a 18, é mostrado pelo cinema, sobretudo o europeu, mas o Tio Sam, agora ele mesmo, aprende e vai usar quando a Segunda Guerra explode, décadas depois. Mais importantes pro cinema que os filmes de guerra estão dois grandes movimentos que surgem na União Soviética e na Alemanha, marcantes até hoje pro pensamento e pra realização de filmes.
1916
Intolerância (David W. Griffith, 2h55’)
Influenciado pelas críticas de racismo e pelo que viu em Cabíria, Griffith contou uma história das lutas de amor através do tempo, ou pelo menos é o que indica o subtítulo original. Durante 16 semanas, mobilizou 5 mil figurantes numa cenografia que chegava a mais de 50 metro de altura, construída pra mostrar o esplendor de Babilônia, uma das quatro histórias que se entrelaçam no filme. Pra subir tão alto, foi preciso criar um elevador pra câmera, grande passo pra invenção da grua. As quatro histórias, inclusive, são aproximadas pelo tema comum, não pela narração clássica de uma mesma trama, no que muitos consideram uma sinfonia em quatro movimentos. Mesmo custando cerca de 40 vezes o que um filme da época gastava, a obra-prima de Griffith teve retorno. Não financeiro, pois gastou os lucros de Nascimento de uma nação do ano anterior e mais o que o estúdio tinha, mas influenciou Dreyer, Gance e Eisenstein, que criticara o racismo do anterior. Tapa de luva de mestre pra mestre.
1917
O culpado (André Antoine, 1h21’)
No mesmo mês em que a Rússia vive a revolução, Paris recebe uma homenagem na tela do cinema. Belamente retratada nesse drama naturalista, a cidade é palco de uma história que exalta a força feminina, usa com esmero o tempo numa narrativa com retorno ao passado e ainda destaca uma das funções do diretor: lidar com atores. Famoso no teatro, André Antoine soube cuidar, e isso é claro no filme, de seu elenco pra dar ao longa o tom que desejava. Uma curiosidade do ano, embora não referente a algum filme específico, é o telegrama de Lewis J. Selznick (pai de David) ao tsar recém-deposto: ‘‘Quando eu era um menino pobre em Kiev sua polícia não foi gentil comigo e com o meu povo. Eu vim pra América e fiz fortuna. Soube com tristeza que você está sem trabalho. Se quiser vir a Nova York posso te dar um bom trabalho como ator de cinema. O salário não será um problema. Responda a cobrar. Lembranças a você e sua família.’’
1918
A décima sinfonia (Abel Gance, 1h29’)
Numa intriga de amor e morte que cerca um discípulo de Beethoven, o verdadeiro maestro é Abel Gance. Cada cena faz parte da ação, numa verdadeira composição de ritmo que parece ter o espectador sob controle: acelera quando precisa, se entrega a momentos idílicos em meio à apresentação musical e retoma cenas do passado nos instantes de reflexão dos personagens, cúmplices do público, com o qual trocam olhares. Todos os componentes, da fotografia ao cenário e da montagem à música, trabalham pela ação, numa narrativa que, herança de Griffith, conta a história e transmite ideias em harmonia. Os elementos simbólicos são fortes e bem destacados, como a cena da culpa, um ano depois do crime, acompanhada pelo gesto automático de limpar o sangue da pata do cachorro. Um brinde ao bom cinema, que ainda permite, mesmo que por poucos segundos, a sincronia da trilha sonora com as mãos do pianista a dedilhar.
1919
J’accuse (Abel Gance, 2h46’)
Esse é um dos filmes que ainda não cabia no cinema e o próprio diretor refilmou anos depois (1938), como DeMille com Os dez mandamentos (1923 e 1956), quando mais recursos eram permitidos. Gance, no entanto, aproveitou tomadas desta versão no remake. A ousadia maior está em contar uma história da guerra-recém terminada, mas destacando o caráter pacifista da história. Os soldados são glorificados, mas não pelos feitos em batalha: as relações entre eles faz dos personagens mais interessantes do que o conflito, pois entre dois soldados que se encontram nas trincheiras, um é apaixonado pela esposa do outro. Nesse empasse sobre qual o maior combate, Gance, tal qual Griffith, emplaca a dobradinha nesta lista, mostrando-se um dos mais curiosos criadores do cinema do início do entreguerras (e tem mais destaque dele em breve). Parte das filmagens foi feita em batalhas reais e soldados em ação estão em cena nessa acusação, conforme o próprio diretor, à guerra e sua estupidez.
1920
O gabinete do Doutor Caligari (Robert Wiene, 1h18’)
Semeado por alguns anos antes no cinema e encontrando adeptos em outras artes, o Expressionismo Alemão tem neste filme sua einleitung, palavra usada para introdução em alemão, algo como ‘primeira iluminação’. Para muitos é também o primeiro em qualidade expressionista, a obra maior dessa estética que marcou o cinema e é encontrado em cenas, filmes ou na assinatura de diretores até hoje, como Tim Burton. Cenários distorcidos, luzes enviesadas, sombras marcando espaços nada seriam se a história não tivesse essa caraterística insana digna do manicômio que emoldura o filme. Os delírios do Doutor Caligari constroem um filme cuja forma ainda é bem teatral, mas com uma cenografia viva, tão complexa quanto os personagens humanos. No mesmo ano, O golem destaca Paul Wegener e reforça a importância de um dos mais fortes movimentos que o cinema já viu, sufocado poucos anos depois pela ascensão do nazismo.
1921
O garoto (Charles Chaplin, 53’)
No ano do Kammerspiel alemão, que buscava cenas de interiores, o filme escolhido é de rua. No ano de flashbacks, efeitos especiais engenhosos e sonhos mirabolantes de A carruagem fantasma, de Victor Sjöstrom, a obra em destaque enfatiza relações humanas (mesmo que tenha seu momento de sonho). No ano do Efeito Kuleshov, em que a montagem poderia ressignificar as cenas, é um filme pautado no bom roteiro que ganha a ribalta. Uma das mais tocantes obras de um verdadeiro homem de cinema, daqueles capaz de estar em todas as posições ao mesmo tempo, traz uma célebre dupla que funciona: o adulto e a criança. Esse garoto (na verdade uma atriz) é encontrado no lixo e cresce ao lado do vagabundo que prega peças pra sobreviver. Se o que existe pela rua é um conjunto de truques, em casa, o amor sincero dos dois dá a carga dramática necessária pra tensão quando um combinado de ações tenta separar pai e filho.
1922
Nanook, o esquimó (Robert Flaherty, 1h19’)
Depois de registrar durante anos a vida dos esquimós e perder o material, destruído num incêndio, o antropólogo do cinema Robert Flaherty volta a campo pra filmar a vida dos conhecidos. A base do filme é a história de Nanook e sua família, que mostram como caçam, pescam, constroem iglus ou lidam com as descobertas que Flaherty lhes apresenta, como um gramofone. O que torna esse filme um dos principais dessa década do cinema é a mistura entre realidade e ficção. Desde o início, documentário e ficção dividiram espaço nas grandes telas, mas não da forma aqui apresentada. Tudo o que vemos na tela é criado pra câmera. De certa maneira, mesmo realizando os hábitos cotidianos, os esquimós representavam, pois o estranhamento em relação ao gramofone não se repete em relação à câmera, da qual estão íntimos a cada tomada. Mais ainda: algumas cenas, como a pesca com arpão, faz parte do passado deles, mas Nanook a representa pro cinema. Ele, aliás, foi escolhido por ser o mais fotogênico do grupo, mas não virou galã de Hollywood, pois morreu pouco antes de o filme conhecer o público. Quem ficou com o título de galã do ano foi um alemão, Nosferatu, mais uma obra-prima de Murnau (Ops, ele ainda não tinha aparecido? Calma…).
1923
Cœur fidéle (Jean Epstein, 1h17’)
Nesse exercício de experimentação técnica, Epstein contrapõe-se ao que vem acontecendo no cinema que dialoga com outras artes. Sobretudo pra se diferenciar do expressionismo, o filme segue em busca do que alguns chamam de ‘cinema puro’ e acaba encontrando um impressionismo cinematográfico. Se a câmara alemã tem buscado os espaços pequenos e a quase imobilidade, num retorno à estética teatral, Epstein a deixa solta, mais móvel do que o padrão até então visto. Para os olhos de hoje, acostumados com a câmera solta e balançando o tempo todo, isso parece bobagem, mas alguém tinha que começar antes pra termos o hoje. Imagens que buscam a fotogenia são montadas num ritmo acelerado, sobretudo na festa, que também não chega ao ritmo videoclípico de Baz Luhrmann, mas foi um início. Esse realismo poético contrasta com outros marcos da década, mas tem alguns pontos afins com o próximo destaque.
1924
O último homem (F. W. Murnau, 1h17’)
A imagem vale mais do que o homem. Não, isso não é uma análise das redes sociais de hoje, é a frase que resume um dos melhores filmes do cinema. Ao contar a história do porteiro do hotel que, velho, é realocado pra cuidar da limpeza, Murnau faz tudo o que o cinema não fazia e conta a história de um jeito que ele tem dificuldades pra contar até hoje. Num filme sensível sem ser piegas, os movimentos de câmera buscam o personagem e parecem sentir o que Emil Jannings, em atuação sensacional, parece querer expressar em cada suspiro. Os elementos de cena trazem um expressionismo maduro, que grita quando preciso, mas espreita e não abandona o personagem nos momentos de pausa. Sim, um filme de pausa, em que mesmo o final moralista carrega lições de cinema e de vida que vão além das imagens da câmera mágica de Murnau. E há quem diga que esse filme faz parte do Kammerspiel…
1925
O encouraçado Potemkim (S. M. Eisenstein, 1h15’)
Menos didático que A greve, mas amparado no mesmo pensamento, esse longa é um exercício de estruturalismo. Inspirado pelos haicais, poemas japoneses em três versos, o sistema de montagem de atração (mostrado por Kuleshov) faz da revolta na embarcação um grande filme político. Imagens que se compõem em sequência despertam ideias no espectador que o fazem entender o que ocorre na história, o que contribui pra suprimir muitas das cartelas e ainda envolver mais pela continuidade de cenas. O filme é dividido em atos, dos quais se destaca a sequência de desespero e morte na escadaria de Odessa, com tomadas que passam do (melo)dramático ao simbólico num corte. Dentro de uma arte que herdou do teatro a dualidade entre protagonista e antagonista, é o povo, antes relegado ao andar de baixo, que protagoniza esta obra. No mesmo ano, 42 câmeras são usadas pra filmar a corrida de bigas na primeira versão de Ben Hur, de Fred Niblo, refilmada anos depois pra abocanhar Oscars. Ninguém ousou refilmar Potemkim.