Durante um século o cinema gerou filmes que iam a extremos e muitos deles se tornaram referências estéticas, marcos pra alguma técnica ou simbólicos em determinados estilos. Outros eram apresentações de diretores, momentos luminares de suas ações, ou traziam elementos que os tornaram célebres, se não cult. Na penúltima década da sétima arte (por enquanto), fica difícil afirmar que determinado filme é fundamental pra História, porque falta decantar. Alguns destaques se dão por mudanças no sistema, mas a maioria pelas opções narrativas e técnicas que ainda estão frescas na lembrança dos frequentadores das salas escuras.
1996
Trainsppoting (Danny Boyle, 1h33’)
Insanidade é uma boa palavra pra esse longa com o ainda não Jedi Ewan MacGregor. O uso de drogas traz em si uma série de questões complexas, entre químicas, sociais e psicológicas, mas, quando tudo se mistura, encontra o que Boyle fez. Das alucinantes sensações de abstinência no quarto até o sensacional mergulho na privada, algumas sequências são pra viajar. Al Pacino viaja pelo mundo em busca de Ricardo III, um ensaio, um intercâmbio entre cinema, teatro e documentário sobre possibilidades da peça shakespeariana. Os Cohens misturam referências com seu humor peculiar em Fargo, um gore sem pressa de mostrar e dizer aonde certo pragmatismo impensado pode levar, o que inclui o bonito contraste do sangue na neve. E Peter Greenaway pinta o sete com O livro de cabeceira, uma obsessão de sensualidade e delicadeza.
1997
Ou tudo ou nada (Peter Cattaneo, 1h35’) – desemprego, crise social
Eu podia estar matando, eu podia estar roubando, mas não, estou tirando a roupa. Dentro de um contexto social pós-Thatcher, a crise do emprego assola a ilha da rainha e alguns amigos buscam uma solução criativa pra ganhar dinheiro. Divertido à moda inglesa, o longa é inevitável influência pra uma versão feminina em 2003, As garotas do calendário. No Irã, um homem viaja pelo país em busca de alguém que aceite enterrá-lo após seu suicídio. Esse é O gosto da cereja, um sabor de absurdo. E essa é, aliás, a palavra que conduz Woody Allen em Desconstruindo Harry, sobre o vazio criativo de um artista. Mistura de cenas que se entrelaçam ou não, mais parece um livro de contos que um romance de longa metragem. E longas são as ferramentas de trabalho de Paul Thomas Anderson em Boogie nights (não veja com as crianças).
1998
Festa de família (Thomas Vinterberg, 1h46’)
Primeiro filme do movimento Dogma 95, os desentendimentos de uma reunião de família obedecem às normas estipuladas: o cenário e a luz são naturais, num tom quase documental; a câmera no ombro permite ao espectador se aproximar da cena, como se fosse testemunha; não são permitidos efeitos de montagem que descaracterizem o tom da narrativa. A principal traição ao movimento foi a obra ter sido feita em formato digital, e não em 35mm, como indica um dos mandamentos. Pecou pela tábua, mas os fins justificaram os meios. Dos meios de comunicação quem não consegue fugir é Jim Carrey, que interpreta o protagonista de O show de Truman, em que um Grande Irmão de proporções lunares inverte o que tem acontecido no mundo de hoje: não são as câmeras que invadem nossa privacidade, o personagem já é gestado sem direito a ela. Se a Dora, de Central do Brasil, vivesse nesse mundo fechado, não teria tanta dificuldade pra encontrar o pai do pequeno Josué. Ainda bem que não vive e restam escrevedores de carta.
1999
Matrix (Andy e Lana Wachovski, 2h16’)
Imagine adaptar um livro de filosofia pra telona. É quase isso que fazem os irmãos com Simulacros e simulação, de Jean Baudrillard, somando influências de tudo quanto é lugar. Ao questionarem o que é real, geraram reflexões e ainda construíram uma das mais complexas narrativas transmidiáticas, incluindo desenhos, quadrinhos e videogame pra ligar um filme ao outro. Os outros filmes não fazem jus ao primeiro, mas a franquia entrou pro hall dos importantes da ficção científica. E se é pra falar de filme ruim, por que não A bruxa de Blair? Uma porcaria cuja campanha pré-filme soube usar a internet como nenhum outro até então. O soco no estômago do ano se dá com o Clube da luta, de David Fincher, que questiona o estilo de vida americano, o que também ocorre em Beleza americana, estreia com Oscar de Sam Mendes. Almodóvar afirma uma nova fase sem perder a assinatura com Tudo sobre minha mãe e a sensibilidade de Wim Wenders se junta à fragilidade dos músicos no digno Buena Vista Social Club.
2000
Réquiem para um sonho (Darren Aronofsky, 1h42’)
Se começamos a década falando de drogas, aqui elas chegam ao auge e conduzem à pergunta: o que realmente pode ser chamado de droga? Quatro sonhos diferentes conduzem os personagens por caminhos que requerem escolhas, a princípio pequenas e inofensivas, mas voltar é mais difícil. O estômago revira aos poucos e pode rejeitar o que tem dentro conforme a música e a montagem envolvem o espectador. Outro tipo de guerra é travada em Kippour, mas guerra contra quem? A riqueza do filme está nessa sinceridade, geralmente comum a todos os conflitos, em que o soldado não sabe quem é o inimigo. O jogo dos sons e o cansaço dos combatentes substituem as cenas de conflito, mas a ignorância permanece. Conflito mais bonito é mostrado por Ang Lee em O tigre e o dragão, com o inesquecível balé aéreo sobre bambus. Exceto pro protagonista de Amnésia, que precisa de tatuagem pra lembrar neste filme que pode ser visto de forma linear ou de trás pra frente, que é como Christopher Nolan oferece. Pelo mundo, é a vez de Regina Casé ser chamada de Anna Magnani brasileira por conta de Eu, tu, eles.
2001
A viagem de Chihiro (Hayao Miyazaki, 2h05’)
Maior bilheteria da história do cinema no Japão, a animação é tão minuciosa que se pode ver o cabelo de Chihiro balançando ao vento. Os elementos de folclore japonês se misturam com os medos infantis da menina que encontra espíritos e voa até onde a imaginação de Miyazaki alcança. E em 2004 ela vai ainda mais longe quando visita O castelo animado. Outro viajandão do cinema é David Lynch, que nos conduz a Mulholland Drive. Era pra ser o piloto de uma série, mas acabou virando filme, só estava sem final. E mesmo depois de ganhar uma bolada pra terminar, o filme parece não acabar. Mais simples é O quarto do filho, de Nanni Moretti, mas o diretor logo rebate: ‘‘A simplicidade não é simples… É preciso muito trabalho pra consegui-la. Ela não é sinônimo de espontaneidade, nem de improvisação, nem de banalidade. Ela é resultado de uma pesquisa.’’ O marco cult do ano fica com O fabuloso destino de Amélie Poulain, uma jovem que não quer nada além de ajudar as pessoas e deixa Jeunet mostrar uma Montmartre fotografada de maneira diferente. Quem não queria ajudar, mas acabou enrolado por Gandalf foi o Frodo de O Senhor dos Anéis, um filme tão longo que virou três, mas poderia ter virado seis.
2002
Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2h15’)
Aula de História do Cinema: exceto pelos primeiros minutos, o filme tem seu primeiro ato com a linguagem do cinema clássico, bem John Ford, como o próprio Meirelles disse em entrevista; a criança fica jovem e a linguagem ganha o ritmo do cinema contemporâneo, dos anos 1990 pra cá; do baile em diante, no frenesi final, entra a batida da publicidade e um conjunto ainda maior de rupturas, que começa com a galinha de domingo, de Clarice Lispector. Acha isso rápido? Então não veja os três séculos de história da Rússia em duas horas sem cortes de Arca russa, ousadia ensaiada durante um ano e filmada de uma única vez, mas não de primeira. Menos ousado, mas nem por isso menos sensível, é Fale com ela, de Almodóvar, em que ‘ela’ são duas e não 8 mulheres, como no musical detetivesco de François Ozon, em que a casa, como num palco, ganha iluminação teatral cada vez que uma delas canta. E da próxima vez que reclamar de fome, lembre-se de Adrien Brody (sobre)vivendo O pianista no longa de Roman Polanski.
2003
Oldboy (Chan-Wook Park, 2h)
Vingança, informações fragmentadas, uma conspiração invisível movendo os passos do herói. Poderia ser um grande filme B, não fossem a trama do quadrinho de Nobuaki Minegishi e a direção de Park. Entre impactos visuais e narrativos, o espectador é convidado a refletir com o protagonista e procurar por pistas onde ele também não sabe encontrar. Lars Von Trier também pede ao espectador que eduque o olhar em Dogville, filmado numa estrutura teatral com poucos elementos em cena, um ciclorama ao fundo e a cidade riscada no chão. Educativos são Adeus, Lênin! e As invasões bárbaras, filmes políticos e contemporâneos, que direta ou indiretamente passam por todos os ismos até perguntar o que restou. As bicicletas de Belleville, num tom retrô, mostra que resta a vontade de lutar e Tim Burton, com Peixe Grande, deixa claro que sempre há uma boa história a ser contada no final.
2004
Fahrenheit 11 de setembro (Michael Moore, 2h03’)
Mais do que um bom documentário, o filme é um despertador pros americanos que continuaram apoiando George W. Bush depois dos atentados de 2001. O cartel dos distribuidores nos Estados Unidos é tão grande (alguém pensou na grande mídia brasileira?) que o filme só foi exibido nos cinemas de lá depois de ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O mundo todo sabia o que estava acontecendo, menos eles. Os Cohens brilham novamente ao levarem Tom Hanks e sua gangue a estudar música no porão em Matadores de velhinhas e M. Night Shyamalan inverte O show de Truman e mostra que o isolamento da mídia também pode cegar, como em A vila. A política do passado de A queda faz pensar nas ações do presente, mostradas no golpe chileno de Machucca. As polêmicas ficam por conta da discussão sobre aborto em Vera Drake e da bela direção de arte de O lenhador, mote pra se falar de pedofilia. Spielberg é sutil em O terminal e Zhang Yimou deleita os olhos em O clã das adagas voadoras.
2005
Sin City (Frank Miller, Robert Rodriguez e Quentin Tarantino, 2h27’)
Tarantino dirigiu uma cena só, mas tá nos créditos. Nessa transposição dos quadrinhos pra telona, as tomadas, graças também aos recursos digitais, são idênticas aos livros, que ganham ritmo de filme e se tornam uma boa adaptação. Nesse ano de boas transposições começa a melhor franquia do Homem-Morcego com Batman Begins, trilogia dirigida por Christopher Nolan que não desrespeita o herói ou seu passado na nona arte. Também é o ano de V de Vingança, uma das melhores graphic novels já escritas e que não perde na mudança de plataforma. Da literatura de séculos passados temos Orgulho e preconceito, o melhor de Jane Austen sob a tutela de Joe Wright. Capote ganha uma nova vida com a atuação de Philip Seymour Hoffman, enquanto Bill Murray, sempre Bill Murray, olha pro passado em Flores partidas, de Jim Jarmusch. As discussões políticas ficam por conta do macartismo contestado em Boa noite, e boa sorte, de George Clooney, e do lobista interpretado por Aaron Eckhart em Obrigado por fumar.