O cinema, como a mamãe de Saura, faz cem anos, mas com corpinho juvenil. A década tem de ingredientes pra todos os gostos e o mundo experimenta e oferece grandes pratos. As discussões políticas vão à cena com maturidade e os jogos estéticos continham recebendo influências externas e se reinventando. A década termina com o Dogma 95 assinado na Dinamarca e o Brasil vê uma nova esperança nascer pras telonas depois de décadas de gatos pingados e mulher pelada. Godard, o cinema morreu? Viva o cinema!
1986
A mosca (David Cronenberg, 1h36’)
O remake de Cronenberg vem no momento mais propício e se harmoniza em três instâncias: técnica, pois efeitos especiais e maquiagem mostram diante do público as transformações do personagem; humana, numa entrega de Jeff Goldblum que traz sutilezas possíveis apenas na boa atuação; social, com uma discussão sobre identidade e tolerância quando a sociedade começa a ter que lidar com a Aids. Misturando questões sexuais com política e culinária, Denis Arcand mostra ao mundo O declínio do império americano. Como comentou Denise Bombardier, ‘‘é importante ver por trás das palavras. E que palavras!’’ Palavras imersas num contexto que talvez nem pareça político, como a versão tupiniquim de Ópera dos três vinténs, de Brecht, inspiração pra Chico Buarque e levada ao cinema por Ruy Guerra em Ópera do malandro.
1987
A festa de Babette (Gabriel Axel, 1h42’)
Dá pra passar aperto só de imaginar entrar num restaurante chique, com tantos garfos e colheres ao redor do prato que você se pergunta se é uma instalação de arte contemporânea. A sensação é próxima à que viveram os comensais da oferenda feita por Babette, a ser devorada como os olhos e com sorrisos nesse delicioso longa dinamarquês. Wim Wenders celebra a duração da vida em Asas do desejo, mais que um filme romântico, uma obra sobre escolhas e sobre Berlim. Bernardo Bertolucci torna O último imperador um daqueles filmes que pode ser visto uma vez sem som; isso mesmo, apenas visto. Depois veja de novo, com tudo o que tem direito, mas uma vez, só assista.
1988
Mulheres à beira de um ataque de nervos (Pedro Almodóvar, 1h30’)
O cineasta espanhol conquista o mundo com sua estética kitsch. As cores são tão estouradas quanto os personagens, sempre no limite da histeria numa carga melodramática que apenas o cinema latino é capaz de mostrar, Almodóvar com mais talento. O senso de humor chega a ser tão escrachado que o pensamento sobre a sociedade se torna inevitável e percebe-se que o que há por trás dos trabalhos do espanhol é uma crítica aos valores de hoje. É ano bom na Península Ibérica: Os canibais, do perfeccionista Manoel de Oliveira tem outro tom de humor pra discutir as convivências. De poucos amigos, mas muitos fãs, é Akira, animação de Katsushiro Otomo que fez muito menino ler mangá (ou querer uma moto vermelha).
1989
Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 2h35’)
Dizer que o cinema diverte e educa é clichê, melhor mostrar isso. Um projetor virado pra praça em dia de sala cheia e todos podem ver o filme. Uma aula de democracia, uma das melhores cenas que a sétima arte produziu. Num dos melhores filmes também: sensível, encantador, político, humano. O tempo dos ciganos é, conforme o diretor Emir Kusturica, um concerto de rock com as formas narrativas herdadas da Nouvelle Vague. Faça a coisa certa, de Spike Lee, mantém a tensão constante sobre ter ou não algum conflito direto, como o mundo vive hoje. Em Palombella rossa, Nanni Moretti conta uma história sobre o Partido Comunista Italiano, sobre pólo aquático e sobre cinema. Menos político da lista, O matador, de John Woo, mostra cenas de luta que são como balés coreografados, influência pra Matrix e Kill Bill.
1990
Sonhos (Akira Kurosawa, 1h59’)
‘‘O homem é um gênio quando sonha’’. O autor da frase comprova isso nas oito histórias dessa obra-prima produzida por Steven Spielberg e que transforma Martin Scorsese em Van Gogh. À realização de se poder visitar uma tela do pintor contrapõe-se à assustadora conversa dos militares mortos que saem do túnel. Cada história pede um superlativo diferente pra descrevê-la. Quem parece também sonhar acordado é Tim Burton, autor da fábula Edward Mãos de Tesoura, que o consagrou em todo seu expressionismo animado. Menos onírico é Taxi blues, discussão social entre um músico e um motorista neste filme russo com padrão americano: Hollywood ganhou a Guerra Fria. Uma desmistificação: gângsters passam o tempo ganhando dinheiro, não matando pessoas. É o que Scorsese mostra em Os bons companheiros.
1991
Barton Fink (Joel Cohen, 1h57’)
Com o subtítulo Delírios de Hollywood, o filme dos irmãos Cohen (Ethan não assina a direção, mas eles funcionam em tandem) traz o tom de humor negro característico da dupla numa situação que mostra um John Turturro que nasceu pro papel. Que roteiro! E com um surrealismo apresentado em cada cena que não deixa o espectador duvidar da realidade da história. Um grande jogo com o espectador. Também pra público são dispostas as pistas do francês A dupla vida de Véronique, e em O silêncio dos inocentes o sujeito que vai ver o filme é jogado de um lado pro outro como Clarice Starling entre Hannibal Lecter e Buffalo Bill. Lars von Trier é criticado por usar projeções e transparências em Europa, mas o faz com conhecimento de causa, assim como Jean-Pierre Jeunet diverte com as histórias do açougue Delicatessen.
1992
Cães de aluguel (Quentin Tarantino, 1h39’)
Sangue, tiros, muita violência visual e verbal, diálogos rápidos, ritmo frenético, mas com pausas, silêncios, movimentos lentos de câmera e volta e meia uma pergunta na mente do leitor: foi isso mesmo? Esse é Quentin Tarantino, um dos mais cults diretores no cinema atual, aqui em seu filme de estreia, em que até os nomes dos personagens são motivo de brincadeira. Em contrapartida, o veterano Clint Eastwood homenageia John Ford e os célebres faroestes em Os imperdoáveis, mostrando que o mundo vive à sombra dos grandes heróis. Fato claro na onda de remakes que temos hoje. Spike Lee faz de Malcolm X seu Jesus Cristo e Coppola faz de Drácula de Bram Stocker uma pintura em movimento (exceto pelos olhos de Gary Oldman, que não piscam).
1993
Adeus, minha concubina (Chen Kaige, 2h51’)
Até que ponto a vida imita a arte é o questionamento das décadas de relacionamento entre dois atores do teatro chinês. O que não se pode fazer em cena pode ser feito fora dela? E viver no palco o que não ocorre fora dele? Político e romântico, além de ter uma plasticidade digna da boa maquiagem chinesa. Outra forma de lidar com o amor proibido é tratada por Jane Campion em O piano, com outro tom na sutileza e também um deleite aos olhos. Krzysztof Kielowski inicia a Trilogia das Cores com A liberdade é azul enquanto Cuba nos saboreia com Morango e chocolate. Spielberg lança Jurassic Park pras bilheterias e A lista de Schindler pro Oscar.
1994
Pulp fiction (Quentin Tarantino, 2h58’)
Mais sangue, mais tiros, mais violência visual e verbal, mais diálogos rápidos, ritmo mais frenético, mas com mais pausas, mais silêncios… enfim, mais Tarantino. Ele se torna celebrado mundo afora e cria o Padrão Tarantino de contar histórias, com humor característico, montagem esquizofrênica e BigMac. Outra dose de violência vem no intenso Assassinos por natureza, já com senso de humor mais restrito. Crítica aos ídolos produzidos pela mídia, o soco no estômago dirigido por Oliver Stone é um caos de imagens e sons, como a televisão de então e de hoje, por vezes sem sentido. No entanto, de tudo o que o ano apresentou pro cinema, o mais perverso é Scar, ao matar o irmão e lançar o jovem Simba pras hienas. O rei leão é o primeiro desenho animado a assumir o topo das bilheterias.
1995
Underground (Emir Kusturica, 2h50’)
A guerra é de interesse dos homens, mas até que ponto esse interesse é capaz de mudar as relações é uma questão que levou Kusturica a quase parar de fazer cinema. Foram tantos os bombardeios ao filme que ele ameaçou abandonar o ramo, mas, ainda bem, não cumpriu. De uma insanidade atroz como a guerra, com direito a metalinguagem e muita música, a sétima arte se vê bem presenteada em seu centenário. Quem também apanhou da crítica foi Mathieu Kassovitz ao lançar O ódio, tão generalizado que todos preferiram reagir antes de refletir. O Brasil encontra um novo caminho com a chegada de Carlota Joaquina, princesa do Brazil, em que Carla Camurati marca o início da chamada retomada do cinema brasileiro. Woody Allen briga com os deuses, nem sempre presentes, em Poderosa Afrodite e o roteiro de Os suspeitos cria um grande vilão que ninguém conhece, mas todos juram conhecer. A animação chega a um novo patamar, sob as bênçãos de Steve Jobs: Toy Story.