O cinema fala! E Greta Garbo também. Na década do som, a sétima arte mostrou que é malandra: viu a novidade, brincou com ela e aprendeu a usar bem rapidinho. Quando muita gente achou que o som seria a grande revolução, ela mostrou que quem fala sozinho é rádio e manteve ousadias visuais, com várias telas ao mesmo tempo, empilhamentos de signos pra investigar assassinatos e animações gigantescas. Se os movimentos russo e alemão se enfraqueceram ao longo dos anos, o discurso se mostrou forte em terra de Hitler, a Inglaterra exportou Hitchcock e os americanos beberam de fontes europeias pra requintar a comédia. Aos que ainda duvidavam do poder dessa arte, grandes artistas venceram a barreira do som pra dizer que ficariam por muito tempo.
1926
A General (Clyde Bruckman e Buster Keaton, 1h45’)
Como pode uma grande locomotiva ser personagem de um filme? Pergunte a Buster Keaton ou Fernando Fiorese, que fez um paralelo entre o trem e o cinema e como as novas formas de tecnologias podem ganhar (ou fazer o homem perder) características humanizadas. Keaton enfrenta exércitos pra atravessar os Estados Unidos e salvar seus dois amores: a locomotiva General e Annabelle. Com poucas cenas de estúdio e um bom roteiro, são quase duas horas que não deixam o espectador piscar, curioso pra saber qual será a próxima artimanha de homem que nunca ri. Esse também é o ano em que o termo ‘‘documentário’’ é usado pela primeira vez, por John Grierson, e o som acompanha a imagem em Don Juan, de Alan Crosland, mas ainda com pouco impacto. Porém, com menos do que Fausto, de Murnau.
1927
Napoleão (Abel Gance, 5h)
Dezoito meses de filmagem, 450 mil metros de película, 18 câmeras, um ano de montagem e três telas ao mesmo tempo. A ousadia de filmar a vida de Napoleão vem com um projeto do tamanho da tumba desse governante. O som só entrou no filme em 1934, mas a grandiosidade das imagens, influenciadas por Nascimento de uma nação, transcende todas as mudanças que a obra sofreu e deixa muita gente ainda de queixo caído. Em termos técnicos, a grande revolução do ano foi O cantor de jazz, de Alan Crosland (o mesmo que brincou disso no ano anterior), em que o protagonista surpreende por falar uma frase ao final do filme. Com impacto comparado ao da Chegada do trem à estação, o filme não chega a tanto, mas abre portas pro futuro. Sobre isto, e com mais uma reflexão acerca de homens e máquinas, está Metrópolis, de Fritz Lang. Esse ano também tem Eisenstein brincando com os ideogramas japoneses em Outubro. As escolhas têm ficado difíceis.
1928
A paixão de Joana d’Arc (Carl Theodor Dreyer, 1h50’)
Síntese do que o cinema vivia naquele período, a obra-prima de Dreyer mistura a origem ao mostrar a força do teatro nas interpretações e o porvir ao fazer um filme mudo sobre a palavra. Cenários suntuosos e montagem articulada contrastam com a ausência de maquiagem nos rostos dos atores, fundamental pra célebre cena da morte de Joana d’Arc, que carrega eternamente o rosto de Renée Falconetti em sua última passagem pelo cinema. Os planos fixos no rosto dela e dos juízes misturam tensão e poesia, sem pressa de ficarem célebres nas retrospectivas da sétima arte. Em contraste, a voz de Walt Disney irrita um pouco quando o rato Mortimer, futuro Mickey, canta em Steamboat Willie, mas anuncia uma nova forma de fazer animação pra quase uma década depois. Foi também o ano do Quota Act, lei da Grã-Bretanha que destinava parte da bilheteria de qualquer filme exibido no país pra produção local.
1929
Um cão andaluz (Luis Buñuel, 15’40’’)
Com um (enorme) toque de Salvador Dalí, o filme surrealista por excelência misturou cavalos, pianos e formigas pra mostrar que nem tudo precisa ter coerência pra fazer um grande espectáculo. Desde a famosa cena inicial, que inclui olho e bisturi (não viu? veja!), o curta se tornou célebre em todo o mundo e foi aclamado como a maior obra do gênero que a sétima arte já viu. Outras surgiram, mas a referência de surrealismo no cinema se mantém. No mesmo ano, Dziga Vertov disse que o cinema deveria ter um caráter mais cru e exibiu O homem com a câmera, mas a montagem de Elizaveta Svilova foi fundamental pra acrescentar os efeitos e as trucagens dessa objetividade. Nos Estados Unidos, finalmente o som vem com classe pro cinema: Melodia na Broadway, de Harry Beaumont, cria o modelo que por muitos anos seria usado nos musicais e Hallelujah, de King Vidor, faz da real participação das vozes a primeira obra-prima realmente sonorizada.
1930
O anjo azul (Josef von Sternberg, 2h)
‘Marlene sou eu!’, foi o que disse Sternberg quando estava cansado de ouvir elogios apenas a Marlene Dietrich em seus filmes. Foi ele quem, neste filme que mistura expressionismo e naturalismo pra contar a história de um bordel (que existe, pode procurar na internet), mudou partes da história pra destacar mais sua musa Dietrich do que o protagonista Emil Jannings. No duelo de estrelas, Clarence Brown lançou Anna Christie, que tinha no cartaz o slogam ‘Garbo fala!’, pra dizer que uma das grandes atrizes do cinema mudo também era grande no sonoro. Luis Buñuel era condenado pela direita francesa, que rasgou telas de Miró e Dalí no hall do cinema que promoveu a estreia de L’âge d’or, e quem ficou quieto foi o jovem Mário Peixoto, de apenas 23 anos, ao lançar Limite, considerado ápice do cinema mudo no Brasil, elogiado por Eisenstein e Orson Welles, que ainda não entrou em nossa história.
1931
M, o vampiro de Düsseldorf (Fritz Lang, 1h51’)
Inspirado por um artigo de Egon Jacobson, Lang construiu cada quadro deste filme em que a música é um personagem. Primeiro filme sonoro do diretor, é possível perceber a minúcia em cada cena, considerando reflexos no espelho ou na vitrine, sombra no poste ou a angustiante bola rolando. Mais do que músicas e falas, o som é um signo autônomo e sem ele o filme não existiria ou, menos ainda, causaria polêmicas com o título, que teve que ser mudado e, pelo menos em português, traz um lado ridículo a quem não conhece a explicação. Num dos melhores filmes que o cinema já produziu, Lang deixa seu recado e faz pensar, até hoje, na diferença entre o bem e o mal. Quem preferir o lado mais sensível da telona pode ver Luzes da cidade, de Charles Chaplin, e ao antropólogo vai a dica da parceria entre Murnau, em seu último filme, e Flaherty, que impressionaram o mundo com Tabu. Aos mais politizados, A nous la liberté, de René Clair, um reflexo da esquerda francesa no poder, que influenciou Tempos modernos, de Chaplin.
1932
Vampyr (Carl Theodor Dreyer, 1h15’)
Em alguns lugares a obra carrega o subtítulo ‘A estranha aventura de David Gray’, que é o personagem principal. Por um lado, os atores têm movimentos precisos coordenados pelo diretor, por outro, a câmera parece ter vida própria. Ela viaja pelas cenas e por vezes confunde o espectador, pois ora é subjetiva e ora não. Isso ajuda a gerar confusões narrativas que desorientam pelo excesso de sugestões do filme, que por vezes deixa de lado a objetividade, tudo contribuição sueca pro cinema até hoje. Do outro lado do Atlântico, Howard Hawks vivia um drama com a censura pra lançar Scarface e teve que acrescentar cenas moralizantes. Isso não impediu que a obra fosse um filme-modelo para o gênero gângster, apreciado por Al Capone (que disse isso ao diretor) e refilmado décadas depois por Brian De Palma. E os surrealistas rejeitavam Sangue de um poeta, de Jean Cocteau, alegando que o filme trazia mais uma estética narcisista que uma revolta. Pelo menos os amadores ganharam o filme de 8mm pra brincar.
1933
King Kong (Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, 1h44’)
Tão importantes quanto os diretores (não creditados no filme) é Willis O’Brien, responsável pelos efeitos especiais, ou seja, pelo macaco, só isso. Se os diretores não queriam ceder ao ator fantasiado pra fazer o grande gorila que conquistou o mundo, quem cuidou das maquetes e miniaturas foi O’Brien, responsável por coordenar o que acontecia frame a frame durante as filmagens. Durante um ano a produção se dividiu entre as miniaturas e as peças em tamanho real criadas pra grandes closes, como aconteceu mais de meio século depois com Jurassic Park, com a diferença de que o filme de 1933 foi plasticamente inspirado em Gustave Doré, não o primeiro desta seleção de Kinos. Foi também o ano de Zero de conduta, de Jean Vigo, censurado até 1945, e de um dos melhores curtas de animação feitos por Walt Disney: Os três porquinhos.
1934
Aconteceu naquela noite (Frank Capra, 1h45’)
A primeira comédia do diretor criou um modelo americano pro gênero, a screwball comedy, ou comédia sofisticada com um toque burlesco. Jacques Pinturault e Claude Beylie dizem que a comédia francesa de boulevard encontra o New Deal, numa definição que parece rocambolesca, mas que traz a simplicidade de um quarto de hotel de beira de estrada. Enquanto isso, Jean Vigo mostrava que poesia, música popular e surrealismo podem se encontrar num documento social, que ele chama de Atalante. Robert Flaherty aperfeiçoa sua pesquisa ao mostrar a luta do homem contra o mar em O homem de Aran e o cinema didático soviético se engessa em fórmulas conhecidas ou, nas palavras de Vincent Pinel, a poesia vira prosa.
1935
O triunfo da vontade (Leni Riefensthal, 1h54’)
‘‘Mostrei o que todos testemunharam; naquele tempo acreditávamos que era uma coisa boa. O pior estaria por vir, mas quem sabia?’’ Foi o que a diretora disse 30 anos depois de marcar o cinema e a história. Ela nunca foi membro do partido nazista, mas teve 30 câmeras, um elevador de 38 metros e carta branca pra exaltar o discurso de Hitler e construir uma aula de propaganda que não pode ser esquecida, sobretudo pra que o conteúdo não aconteça novamente. Menos preocupante é Uma noite na ópera, primeira produção dos irmãos Marx (sem Zeppo) pra MGM e sob o comando de Irving Talberg, que não é apenas uma cabeça dourada na festa do Oscar. Ele era o homem forte do estúdio e mudou muito do cinema americano com suas audiências-teste e bastante pragmatismo, como o que usou neste trabalho: disse que os irmãos deveriam fazer filmes mais estruturados. Motim a bordo tem também boas histórias: se o diretor Frank Lloyd empolga em um filme que vale pela interpretação dos atores, é o galã (canastrão) Clark Gable quem reclama por tirar o bigode, pois não havia piratas bigodudos no tempo da narrativa. E Top hat, com Fred Astaire, tem uma das melhores músicas que o cinema já tocou.